É de um outro tempo o sofrimento embriagado de Paulo, o jornalista frustrado interpretado por Gustavo Machado no filme “A Voz que Resta”, dirigido por Roberta Ribas e pelo próprio ator, em uma estreia dupla dos experientes artistas no ofício.
O tempo do personagem é o do amor sem comedimentos, desabafos gravados em fitas cassete, fotos analógicas, cartas, livros e garrafas espalhados pelo chão em uma longa jornada noite adentro.
“Eu sou do tempo do onça. Eu não digito. Eu datilografo. Eu acaricio as teclas como quem puxa um gatilho”, diz o homem atormentado. “Eu sou uma Remington. Um piano de letras”.
Adaptado do monólogo teatral escrito por Vadim Nikitin e encenado por Machado, o longa revela as dores de amor do jornalista na madrugada em que ele decide encerrar a relação com Marina, a vizinha casada que descansa cinco andares abaixo, alheia aos barulhos e às assombrações da noite: o som de um piano, a algazarra na rua, o cheiro do hambúrguer frito na esquina.
O caos e a decomposição do ambiente espelham o desespero de Paulo, exausto da rotina de copidesque em que precisa buscar sinônimos perdidos nos turbulentos horários de fechamento de um jornal, diante de um computador que destrói as suas inspirações.
O jornalista lida, ao mesmo tempo, com os textos alheios que considera medíocres e com o desequilíbrio provocado pelas noites sem dormir. Paulo é de uma época em que o fim de um romance provocava insônia e não a busca desenfreada pelo próximo match nos aplicativos.
Ele tem saudade. Da máquina de escrever. Do voo com circunflexo. Da linguiça com trema. Dos acentos em ideia, estreia, Medeia. De Marina e do piercing no umbigo que a aspirante a atriz e garçonete chama de aliança.
Cinema de guerrilha, produzido com equipe enxuta, “A Voz que Resta” foi gravado durante quatro dias na casa de Machado, ator que inclui a criação de intimidade com o cenário como uma etapa importante de seu trabalho.
Nesse caso, ele já era o dono do espaço, um apartamento que o personagem está prestes a abandonar para sempre. Há intimidade também com o autor, de quem é amigo, e com o personagem, que interpretou com sucesso no teatro. O cenário é formado por objetos levados pelos profissionais envolvidos na produção, o que ressalta ainda mais o estilo intimista da obra.
A intensidade com que o ator se entrega ao desespero e às frustrações e o texto metafórico e inspirado de Nikitin fazem com que os delírios de Paulo, embalados por doses de conhaque, não se tornem um suplício para o espectador na 1h25 de duração do filme.
“Essa fita é a minha apoteose, o meu apocalipse”, o homem afirma, entre a poesia e o desamparo, antes de brindar a morte da paixão. Ele sente raiva, desamparo, tristeza, mas também desejo.
Ao contrário da peça, em que Marina era apenas citada, no filme a mulher, interpretada por Ribas, aparece nas memórias de amor e ódio de seu ex-amante. Ela aparece, mas não fala. Ou seja, a personagem que conhecemos é a que esta nas recordações e idealizações.
A obra mantém a estrutura de monólogo. Como no espetáculo teatral, a história é toda construída por meio da narração desesperançada do jornalista, o que, após muitos minutos de bebedeira e lamentações, provoca o desejo de avanço, de novos acontecimentos.
A voz é de Paulo e a cor que predomina no longa, o vermelho, também é a dele. Vermelho de sangue e da raiva de um homem machucado por não conseguir entender e reter, como gostaria, o alvo de sua paixão.
Em tempos de questionamento do comportamento masculino, ainda estruturado no machismo e na misoginia, a originalidade de “A Voz que Resta” é mostrar a dor de um homem abandonado, talvez até por si mesmo.
A questão não é ter piedade de Paulo, mas sim observar que as desilusões do personagem são demasiadamente humanas.
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