A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de ampliar o alcance do foro especial por prerrogativa de função elimina uma lacuna que trazia incerteza, mas gera questionamentos devido às idas e vindas da corte sobre a matéria.
O tribunal fixou na última terça-feira (11) que a prerrogativa de foro se estende após a saída do cargo. O entendimento alarga a noção anterior de que a competência do STF está circunscrita a casos de crimes cometidos no mandato e em razão dele.
Por um placar de 7 a 4, os ministros entenderam que a nova interpretação deve ter aplicação imediata, ficando preservados todos os atos praticados com base no entendimento anterior. A tese foi proposta pelo ministro Gilmar Mendes.
Advogados e professores ouvidos pela Folha afirmam que a nova regra fecha uma brecha que permitia a suspeitos renunciar para fugir de um julgamento na corte, mas dizem que a posição sobre o tema oscilou nos últimos anos, gerando insegurança jurídica.
Pela Constituição, cabe ao Supremo processar infrações penais comuns de presidentes, vices, congressistas, ministros do tribunal e procuradores-gerais da República, além de crimes comuns e de responsabilidade de outros agentes.
A última grande mudança de entendimento sobre o assunto ocorreu em 2018, quando houve a alteração das regras para reduzir o escopo dele a crimes “cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas”.
A competência do órgão julgador era determinada pela regra da atualidade, que observa o exercício da função durante o processo. Ou seja, ao deixar a função, o ocupante do cargo poderia ser julgado por outro tribunal ou juiz.
Para Alberto Zacharias Toron, advogado e professor de processo penal da Faap, esse é o principal ponto alterado pela nova decisão do STF. “A disfunção corrigida tem a ver com a impossibilidade de o acusado, ao renunciar ao cargo por conveniência, conseguir escolher o juiz que irá julgá-lo, isto é, o tribunal ou o juiz de primeira instância.”
O advogado e ex-presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) Renato Vieira considera que o ajuste de entendimento é um passo saudável, mas não resolve o problema de idas e vindas do STF a depender do período.
“Esse problema vai ser resolvido quando remanejarmos a competência penal originária da corte, o que vai muito além de tentativas de boa vontade e de correção dos ministros”, diz ele, que defende a aprovação de uma emenda constitucional para sedimentar o assunto.
“Nós vamos nos defrontar com isso [um novo impasse acerca do alcance da prerrogativa de foro especial] daqui a poucos anos. Daqui a cerca de 10 anos no máximo esse problema vai voltar a surgir”, arrisca a previsão Renato Vieira.
Eloísa Machado, professora da FGV Direito SP, afirma que o vaivém da corte sobre o foro vem de há praticamente duas décadas e que o Supremo ora amplia e ora restringe a competência porque enfrenta desafios na aplicação dos entendimentos.
Por exemplo, em 2010, o deputado Natan Donadon (então PMDB-RO) renunciou ao mandato na véspera da sessão de julgamento. O congressista era acusado de formação de quadrilha e peculato. O STF decidiu que aquilo não afastaria sua competência, julgou o caso e o condenou a 13 anos, 4 meses e 10 dias de prisão.
“A principal preocupação do Supremo, pelo menos a que está explícita nessas decisões, é a de garantir que esses investigados e esses réus tenham um deslinde, que a ação penal e a investigação chegue até o fim. E esse é um desafio”, diz Machado.
De acordo com ela, “o que a gente está vendo é um desafio que está colocado para o Supremo há muitas décadas já, que é justamente quando essa renúncia afeta ou não a capacidade do tribunal de julgar aquele caso. Não é trivial a questão”.
A professora sustenta que deve haver uma estabilização no entendimento para evitar mudanças constantes de interpretação para situações semelhantes. Diz ainda que, embora oscilações não sejam incomuns em tribunais, a velocidade nas alterações gera instabilidade e insegurança jurídica, o que é problemático.
Guilherme Carnelós, presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), afirma que mudanças constantes em temas como o foro especial impactam negativamente as garantias democráticas e a credibilidade do sistema de justiça.
“Eu tenho que dar a um réu e mesmo a alguém que não está sendo acusado de um crime a exata certeza de como o jogo vai seguir”, diz Carnelós. “Na medida em que você muda a regra do jogo, com o jogo em curso, e depois muda de volta para a regra que anterior, há um impacto nesse princípio democrático de avisar a regra do antes de o jogo começar.”
Professor de direito constitucional no Insper, Diego Werneck diz que o momento em que a decisão é tomada também parece estar relacionado à denúncia oferecida pela PGR (Procuradoria-Geral da República) de suposta trama golpista em 2022.
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, denunciou no mês passado Jair Bolsonaro (PL) e outras 33 pessoas ao STF sob acusação de participação em plano de golpe de Estado para manter o ex-presidente no poder.
Bolsonaro é suspeito dos crimes de organização criminosa armada, abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.
A expectativa é que o ex-chefe do Executivo seja julgado ainda neste ano para evitar uma possível contaminação nas eleições presidenciais de 2026. O caso deverá ser apreciado pela Primeira Turma, onde atua o relator, ministro Alexandre de Moraes.
Segundo Werneck, a acusação não trata no detalhe da competência do Supremo. Com a nova interpretação do STF, no entanto, diminui o espaço que as defesas tinham para contestação, visto que parte dos denunciados ocupou cargos com prerrogativa de foro, mas já deixaram as posições.
O professor diz, contudo, que ainda há uma “margem de manobra” que pode gerar imprevisibilidade e incerteza nos julgamentos, que é a classificação pelos ministros dos crimes como sendo relacionados às funções desempenhadas.
“No fundo, essa decisão resolve um problema que era real”, afirma. “Uma fonte de incerteza é controlada com essa mudança de entendimento, mas a incerteza essencial permanece, que é o tribunal articular critérios claros para saber o que são os crimes considerados ligados ao exercício da função.”
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