Corria um evento em homenagem a figuras do samba, e Xande de Pilares estava incomodado: por que gente nova subia ao palco antes de Neguinho da Beija-Flor? Quando chegou a sua vez, Xande jogou luz sobre o experiente cantor.
— Sem citar o nome dele, contei a história de alguém que me ajudou a não seguir o caminho errado, porque, onde eu morava, isso era muito fácil. Da importância de ele ter gravado uma das primeiras músicas minhas, “Grades do coração”. Aí chamei no palco e cantamos juntos — recorda ele. — Sou um cara muito conservador em relação aos meus ídolos. É comum hoje o cara fazer sucesso e achar que é do tamanho do ídolo. A gente não é. Na escada, tem o degrau de baixo e o degrau de cima.
Uma semana depois do evento, Xande propôs a Neguinho fazer um álbum. É um trabalho em torno do homenageado, mas Xande, que estreia como produtor (ao lado de Luciano Broa), se empolgou e decidiu participar de todas as 19 faixas ao lado do intérprete da Beija-Flor. Os convidados são Zeca Pagodinho, Teresa Cristina, Ferrugem, Pique Novo, Renato da Rocinha, Andrezinho do Molejo, Helinho do Salgueiro, Swing e Simpatia, Revelação e Vando Oliveira.
— Na infância, a gente ficava esperando o Natal para chegar o disco dos sambas-enredo. As primeiras vozes do samba que eu ouvi, além dos cachaceiros do morro, foram os intérpretes de sambas-enredo — conta Xande, de 55 anos, que nasceu no Morro do Turano e morou em outras favelas da Zona Norte do Rio: Jacarezinho, Morro do Andaraí e Águia de Ouro (o “Pilares” é uma reverência ao cantor de sambas-enredo Carlinhos de Pilares). — Fico muito triste com a forma como as pessoas olham os intérpretes de samba-enredo. Olham como se fossem qualquer um.
Depois de 50 anos defendendo a Beija-Flor na Avenida, Neguinho, hoje com 75, se aposentou no último carnaval, vencido pela escola de Nilópolis. As vitórias e a fama não o impedem de ver sua função como maltratada.
— É um segmento desvalorizadíssimo. Uma vez, perto do réveillon, vi uma faixa na praia: “Show com Fulano, Sicrano e os puxadores.” Não vou participar disso. Cansei de ser “muitos outros”. “Fulano, Sicrano e muitos outros” — diz Neguinho, que ontem participou do Festival Negritudes Globo, no Rio.
O álbum tem músicas mais conhecidas, como “Negra Ângela” e “Gamação danada”, e outras lado B, casos de “Esmeralda” — peça de resistência do cantor seresteiro Carlos José — e “Se liga, doutor”. Há quatro inéditas. Uma delas é “O samba, gosto da minha comida”, parceria de Neguinho com sua mulher, Elaine Reis, e exaltação ao samba por tê-lo afastado da miséria. Ele nasceu no “interior de Nova Iguaçu”, como diz, e era chamado de Neguinho da Vala, antes de virar da Beija-Flor.
Outra nunca gravada antes é “Empretecer”, composição dele e de vários autores e que conta a sua história. Foi apresentada na Beija-Flor na disputa de sambas para o carnaval de 2022.
— “Empretecer” é um samba-enredo que foi para a final, mas não ganhou. A escola tinha um tema que era negritude, o nosso era a minha história, não tinha nada a ver. Não cortaram antes para não me magoar — diverte-se.
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A partir do título da música, Xande resolveu chamar o álbum de “Empretecendo”.
— A gente tem que empretecer mesmo. Eles têm que saber que não são só eles que têm direito às coisas — afirma.
Quando o assunto vira racismo, Neguinho diz que podem passar horas falando.
— Quando eu entro num voo internacional, o que você acha que acontece? O cara do lado fica olhando, quer saber por que eu estou ali. Outro pergunta à aeromoça quem eu sou. Nem é classe executiva, é intermediária. Numa churrascaria top onde às vezes eu vou, todo mundo se vira. Será que esse negão vai me assaltar? — conta.
Xande relata uma situação vivida no Maracanã, onde estava vendo o seu Flamengo num lugar nobre. Uma mulher foi até ele perguntar: “Você faz o quê?” “Agora, eu tô vendo o jogo”, respondeu.
— Numa vez, fui me hospedar num hotel de luxo no Rio. Chegou o atendente: “A diária é X.” “Não estou perguntando quanto é a diária.” Aí chama um, chama outro, até que me reconhecem. Mas não precisava ser assim — diz ele, que há pouco foi ao restaurante de outro hotel de luxo. — Ficou todo mundo me olhando. Falei: “É melhor ligar a televisão. Não sou televisão para todo mundo me olhar.”
Segundo Neguinho, os convites para fazer shows aumentaram depois que ele se aposentou do carnaval.
— Teve muita gente que disse: “Poxa, agora você é nosso.” Ou seja, agora posso te contratar. As pessoas achavam que eu pertencia à Beija-Flor, precisava da autorização da escola. Nunca foi assim — explica.
“Empretecendo” deve ganhar em breve uma versão audiovisual. E Xande está para lançar a gravação do show “Xande canta Caetano”, com mais músicas do que tem o álbum homônimo.
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