A decisão do Ministério da Fazenda de aumentar a tributação sobre operações financeiras (IOF) expôs publicamente um desalinhamento entre os dois principais pilares da condução da política econômica: a pasta comandada por Fernando Haddad, responsável pela gestão e controle dos gastos do governo, e o Banco Central (BC), presidido por Gabriel Galípolo, que tem como principal meta o controle da inflação.
O episódio não apenas gerou mal-estar e acirrou tensões nos bastidores, mas também lançou luz sobre divergências preexistentes e levantou preocupações sobre a coordenação da política econômica do governo. Antes de ir para o BC, Galípolo foi o braço direito de Haddad no comando do Ministério da Fazenda.
O mercado identificou um grave ruído institucional. Segundo Ângelo Passos, economista-chefe da Faz Capital, o desalinhamento entre Ministério da Fazenda e Banco Central nas decisões e na comunicação compromete a previsibilidade da política econômica – ativo crucial para qualquer país, especialmente no cenário brasileiro de juros altos e risco fiscal elevado.
“Essa divergência representa um alerta crítico: quando os principais responsáveis pela política econômica não falam a mesma língua, os investidores precificam maior risco, resultando em fuga de capital ou aumento no custo de financiamento”, diz
A situação ocorre em um momento de grandes desafios para a economia brasileira. A inflação em 12 meses atingiu 5,53% em abril, obrigando o BC a elevar os juros para 14,75% ao ano, a maior taxa em 19 anos. Ao mesmo tempo, o governo busca adequar-se às metas fiscais apostando no aumento dos impostos.
A autoridade monetária conta com um desaquecimento da atividade econômica para ajudar a conter a alta nos preços ao consumidor, mas o governo está adotando estratégias no sentido contrário: anunciou a liberação de um saque extraordinário do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), ampliou as faixas de liberação de recursos para o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida para atender à classe média e flexibilizou as regras para a concessão do empréstimo consignado em folha de pagamento para os trabalhadores da iniciativa privada.
Uma das principais preocupações do BC é que a atividade econômica está mais aquecida do que se esperava. Já se esperava um bom desempenho no primeiro trimestre do ano, mas alguns indicadores mostram que houve uma ligeira aceleração no início de 2025.
Depois de o PIB encerrar o ano passado com um crescimento de 3,4%, o quarto seguido com taxas próximas ou superiores a 3%, o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br) subiu 3,8% em 12 meses até março. O Monitor do PIB, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), registrou um aumento de 3,5% no período.
A XP Investimentos avalia que, diante do aumento do IOF, não será necessário um novo aumento na taxa Selic. “Medidas do lado da receita eram esperadas, mas a escolha de aumentar a tributação sobre operações financeiras tem efeito relevante do ponto de vista monetário, reduzido ligeiramente a pressão sobre a política monetária”, destacam os economistas Caio Megale e Rodolfo Margato.
Depois de Campos Neto, Galípolo é a “bola da vez” nas críticas ao BC?
A “lua de mel” que parecia marcar o início da relação entre Fazenda e o BC de Galípolo, em contraste com a postura mais confrontadora do governo Lula em relação a Roberto Campos Neto, na gestão anterior do Banco Central, parece ter terminado, ou pelo menos dá sinais claros de esgotamento.
Às diferenças de visão sobre os efeitos da taxa Selic na economia, que já eram motivo de desconforto nos bastidores, somou-se agora o ruído gerado pelo anúncio e posterior revisão das medidas do IOF.
O foco da mais recente controvérsia entre o Banco Central e o Ministério da Fazenda está na forma como as alterações no IOF foram anunciadas por Haddad na última quinta-feira. Segundo a Folha de S.Paulo, Galípolo não teria sido informado previamente sobre os detalhes das mudanças na tributação do IOF.
Mais do que a falta de aviso, o presidente do BC é contrário às alterações na tributação anunciadas pela Fazenda. Galípolo declarou, na sexta (23), ter “antipatia” e “resistência” à ideia de elevação do Imposto sobre Operações Financeiras com a finalidade de aumentar a arrecadação federal, buscando o equilíbrio entre receitas e despesas.
A contrariedade de Galípolo com um aumento no IOF não é recente. Em discussões anteriores, ele destacara que era contra qualquer mudança no imposto quando se discutia alternativas para a busca da meta fiscal. A preocupação dele decorre do receio de um eventual impacto sobre o câmbio e do temor de ser uma forma indireta de controle cambial.
O IOF é um imposto de caráter regulatório e de competência federal, podendo ser alterado por meio de decreto, dentro dos limites da legislação, sem necessidade de aprovação do Congresso Nacional. Isso dá ao governo federal autonomia para modificar suas alíquotas.
As alterações anunciadas inicialmente pela equipe econômica tinham por objetivo gerar uma arrecadação de R$ 20,5 bilhões em 2025 e R$ 41 bilhões em 2026, totalizando R$ 61,5 bilhões nos dois anos.
As versões conflitantes da comunicação entre o BC e o Ministério da Fazenda
Um dos pontos mais ruidosos da divergência entre o BC e o Ministério da Fazenda foi a comunicação desencontrada por parte da equipe econômica sobre o envolvimento do BC na decisão.
Na coletiva de imprensa que anunciou as medidas, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, foi questionado se o ministro Haddad tinha conversado sobre a edição do decreto do IOF com Galípolo. Durigan respondeu que os dois conversaram em encontro que tiveram na terça-feira (20).
O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, afirmou que as alterações no IOF colaborariam com o trabalho do BC de “acomodação da dinâmica do crédito” e apoiariam o processo de encerramento do ciclo de altas dos juros e a convergência da inflação para a meta de 3%, contribuindo assim para a redução da taxa de juros.
Mas, quase duas horas após o fim da entrevista, Haddad utilizou seu perfil em uma rede social para contradizer as declarações dos auxiliares. “Sobre as medidas fiscais anunciadas, esclareço que nenhuma delas foi negociada com o BC”, disse.
Na sexta-feira, Haddad disse que houve troca de informações com o Banco Central sobre o aumento do IOF, mas não sobre as “minúcias” das medidas. “Eu converso com o Galípolo frequentemente e disse a ele que íamos tomar medidas com relação à despesa, com relação à receita, mas a minúcia do decreto não passa pelo Banco Central”, declarou ele.
O presidente do BC também tentou afastar rumores de que a medida foi discutida com a autoridade monetária, o que poderia levantar dúvidas sobre a independência da instituição. Ele afirmou que só tomou conhecimento dos detalhes do aumento do IOF durante o anúncio na quinta-feira.
Segundo O Globo, fontes que acompanharam de perto o tema relataram que o presidente do BC foi avisado das medidas de forma rápida após uma reunião de trabalho com a equipe da Fazenda sobre vários assuntos, mas não houve uma consulta, nem mesmo informal, e Galípolo não fez nenhum comentário na ocasião.
O desconforto na relação entre Fazenda e BC começou a ser sentido já em dezembro, quando uma reunião discutiu medidas para elevação do IOF. Secretários do ministério teriam pressionado Galípolo a aceitar as mudanças, mas este mostrou resistência.
Na semana passada, após o anúncio, Galípolo demonstrou incômodo com o fato de auxiliares de Haddad terem afirmado que ele estava ciente da iniciativa, especialmente diante da má repercussão no mercado. Ao saber sobre o desconforto, o ministro ligou para o presidente da autoridade monetária e desmentiu a negociação prévia.
Haddad fez um rápido recuo diante da rejeição da alta no IOF
Diante da repercussão negativa entre agentes do mercado financeiro, o Ministério da Fazenda decidiu rever parte das medidas, recuando da proposta de aumentar o IOF sobre a aplicação de investimentos de fundos brasileiros no exterior (mantendo a alíquota zero) e das remessas destinadas a investimentos por pessoas físicas (mantendo 1,1%).
A decisão de voltar atrás foi anunciada ainda na noite de quinta-feira (22), por meio de uma publicação no X, poucas horas após o anúncio oficial. O portal Infomoney aponta que a avaliação de Galípolo pode ter sido “decisiva” para o governo mudar de ideia sobre a tributação.
O presidente do BC teria sido consultado pelo Palácio do Planalto na quinta sobre as medidas antes da posição oficial do governo pelo recuo. Galípolo teria alertado que a dura reação do mercado acabaria levando o Banco Central a retomar o ciclo de alta dos juros. Essa perspectiva pode ter pesado na decisão pelo recuo.
O economista-chefe da Genial Investimentos, José Marcio Camargo, não descarta a possibilidade de que o controle de capitais esteja nos planos do governo.
“Ficou claro que a questão foi debatida entre o ministro e o presidente do Banco Central no início de janeiro, com o objetivo de aumentar o controle sobre a forte desvalorização do real no final de 2024, e o presidente do BC teria se colocado fortemente contra a imposição do IOF sobre os fundos. Em outras palavras, o objetivo de aumentar o controle de capitais estava na agenda desde o início do ano”, disse.
Segundo Márcio Saito, CFO da Entrepay, especializada em soluções de pagamento, o caminho para o ajuste fiscal não é às custas da previsibilidade econômica e da segurança jurídica. “Tributar investimentos e transações de forma abrupta e pouco dialogada é um freio no crédito, desestimula a concorrência e penaliza justamente os agentes mais dinâmicos da economia: fintechs, bancos digitais e pequenos empreendedores.”
As divergências entre Fazenda e BC vão além da alta no IOF
As divergências entre o Ministério da Fazenda e Banco Central não se restringem ao episódio do IOF. Elas se estendem para a avaliação do impacto do patamar atual da taxa Selic sobre economia e para as perspectivas para a política monetária.
O BC reitera a necessidade de manter a taxa Selic, hoje em 14,75% ao ano, mais alta por mais tempo para controlar a inflação, e diz que dependerá de novos dados sobre a atividade econômica e a inflação para decidir os próximos passos. A expectativa do mercado financeiro é de que as reduções comecem entre a última reunião do ano, em dezembro, e o início de 2026.
A equipe econômica da Fazenda tem avaliações que, por vezes, parecem divergir das do BC. Neste mês, Haddad afirmou que Galípolo saberá conduzir a redução da taxa básica de juros, enquanto o presidente do BC reiterou sua visão de que os indicadores de atividade mostram um dinamismo alto da economia. No mesmo dia, a subsecretária de Política Macroeconômica da Fazenda, Raquel Nadal, colocou em dúvida essa tese, destacando a queda em indicadores de crédito.
O secretário de Política Econômica, Guilherme Mello, afirmou que os juros já afetam as projeções de crescimento do PIB e que a economia deve ter uma desaceleração no segundo semestre em grande parte devido à política monetária restritiva.
As críticas à atuação do BC encontram eco em outros integrantes da cúpula do governo. Nesta segunda-feira (27), o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Aloizio Mercadante, cobrou a redução da taxa Selic.
“A Selic gera dívida. O IOF gera receita, diminui o problema da relação dívida/PIB na sustentabilidade. Eu estou entre aqueles que [entendem que] precisamos olhar gastos estruturais e compensar como é que a gente aumenta a eficiência.”
Outra medida que Mercadante sugeriu para compensar os efeitos da alta dos impostos sobre os empréstimos é o aumento da taxação sobre as bets.
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