Coluna recente de Hélio Schwartsman nesta Folha (“Do caráter subversivo do café”, 15/3) levanta uma questão premente de nosso tempo: a liberdade de expressão pressupõe um direito de não ser ofendido?
Schwartsman constrói seu argumento com base no conceito de esfera pública, popularizado pelo filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas nos anos 1960. Habermas denomina esfera pública o espaço social formado pelo encontro de ideias e informações entre civis que dialogavam sobre temas de interesse coletivo, desde o século 18, em cafés e salões de cidades europeias.
O colunista acerta ao dizer que a ideia de esfera pública está na base das democracias, pois elas ainda hoje se fundam numa conexão entre opinião pública, a soberania do povo e a lei.
Porém, equivoca-se ao dizer que “um suposto direito de não ser ofendido” não é conciliável com a esfera pública habermasiana. Ao dizer isso, Schwartsman confunde o direito que uma pessoa ou grupo tem de não ser ofendido em sua dignidade, direito este que está previsto em nossa Constituição —desde a proibição de tratamento cruel ou degradante ao direito à não discriminação, passando pela possibilidade de indenização em caso de dano aos direitos da personalidade—, com a defesa de um suposto espaço em que as ideias mais caras das pessoas estariam protegidas de críticas.
Criticar, ainda que duramente, ideias e convicções, não é o mesmo que ofender a dignidade daquele com quem se pretende dialogar. Até mesmo os teóricos mais liberais da liberdade de expressão, como John Stuart Mill, consideram que ela encontra seus limites no outro.
Essa confusão entre contestar ideias e ofender pessoas pode ser sanada com outras leituras de Habermas, em que desenvolve a ética discursiva, necessária para gerar uma esfera pública crítica ou mesmo uma democracia deliberativa. Para que a livre contestação de ideias tome corpo nos espaços públicos, dos cafés às mídias sociais e aos Parlamentos, são necessárias duas condições básicas: 1 – o respeito às competências (ou dignidades) cognitivas, morais e identitárias das pessoas, e 2 – a aposta de que debates e deliberações possam resultar em consensos, acordos, ou mesmo discordâncias reconhecidas, ainda que momentâneas e localizadas.
O grande problema atual se dá quando o direito de se contestar ideias se confunde com um direito de contestar dignidades, ou um direito de ofender o outro. Esse é o expediente utilizado por setores da extrema direita, para os quais proferir discursos de ódio encontra guarida na liberdade de expressão. Nada mais falso e injusto.
O direito de não se ter a dignidade ofendida existe sim, e, ao contrário do que entende Schwartsman, é pressuposto da esfera pública, ainda mais num cenário de múltiplas vias de expressão e de múltiplas ofensas e distorções informativas.
O que nunca existiu, em nenhuma Constituição, é um direito de ofender o outro. E não há nada subversivo nessa ideia, a não ser a subversão do próprio princípio da democracia.
Se uma democracia se basear num direito como esse, estará mesmo fadada à morte. Por isso, nos tempos atuais, precisamos nos dedicar a fortalecer nossa dignidade recíproca. Do contrário, não haverá cafezinho que sustente a existência de nossa comunidade política.
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