Quando soube que estava grávida de novo, dona Katia resolveu entregar o tempo de espera à arte da costura. Foi o jeito que encontrou de se distrair e aplacar o medo. Havia passado por um primeiro parto doloroso, que terminou numa não planejada cesariana. Ao se deparar com a segunda gravidez, agora de um menino, sentiu-se diante da possibilidade da morte. Pouco antes, uma cadela querida havia sucumbido enquanto dava à luz cachorrinhos. Só linha e agulha deram conta de amenizar a angústia de aguardar por nove meses.
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As mesmas “armas” foram determinantes quando o filho anunciou sua mudança para Nova York. Santo Amaro da Purificação, a terra da família, no Recôncavo baiano, havia ficado pequena demais. Ele precisava partir rumo aos Estados Unidos em busca de ampliar a carreira de artista visual. Era como se estivesse nascendo uma nova persona, num lugar distante, onde a mãe não tinha controle. Diante da mesma agonia, ela tratou de desenrolar o fio outra vez.
Ao ouvir esses relatos de sua progenitora, Roque Boa Morte, de 40 anos, segundo filho de dona Katia, não só ficou emocionado como teve inspiração para encontrar a peça-chave para um novo trabalho. O artista transformou o crochê em objeto central da videoperformance “Como se nascesse de ventre livre”, realizada em Nova York, onde faz residência desde 2023. São as tramas que cobrem o rosto e o chão sob os pés de seu marido, o professor Jefferson Meneses, clicado à margem do Rio East, no Brooklyn. A imagem, parte da série fotográfica de mesmo nome, integrou a exposição “Afro-Art”, em Salvador, em janeiro.
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— Quando minha mãe me contou essa história, eu tinha acabado de ler o livro “Perder a mãe” (de Saidiya Hartman). Ele diz que, antes de vir para o Brasil, muitos africanos escravizados ingeriam a infusão de uma planta cujo nome era “Esquecer a Mãe” — narra Boa Morte.
Atento às questões afrodiaspóricas, o artista buscou afirmar o contrário. Era como se o fio do crochê o mantivesse ligado à mãe, como um cordão umbilical. Um elo que dona Katia também busca reforçar a cada vez que veste uma camisa velha do filho e volta a costurar, a fim de se aproximar da sensação de seu abraço. Essa ponte acabou servindo de norte para as obras de Boa Morte, que busca falar, por meio de fotografias e pinturas, de um locus não-branco, reativando memórias e produzindo narrativas visuais decoloniais entre Brasil e Estados Unidos.
A produção do artista — que caiu nas graças de colecionadores como Camila Pitanga, Preta Gil, Caio Braz, Marco Pigossi e Bruno Gagliasso — é impregnada da ancestralidade africana e indígena de sua terra. É de lá que ele fala, ainda que seu corpo esteja em deslocamento pelo mundo. Boa Morte cria trabalhos conectados com o Recôncavo, que nascem do processo de investigação artística e intelectual com base na perspectiva do “saber localizado”.
A mais nova prova disso é a exposição fotográfica “Bembé, a festa dos olhos do rei”, que inaugura sexta-feira, na 136ª edição do Bembé do Mercado. O maior candomblé de rua do mundo acontece até domingo, em Santo Amaro, terra de Caetano Veloso e Maria Bethânia.
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A mostra de Boa Morte é resultado de sua pesquisa de mestrado em estudos étnicos e africanos na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Montada ao redor do barracão principal da tradicional festa, a exposição conta com 38 fotos de um acervo de nove mil imagens. O artista usou uma tipografia que dialoga com a arte visual do evento, de potência simbólica e estética, que une memória, resistência e orgulho. Organizou as fotos como se fossem tradicionais bandeirolas de terreiro presas ao teto.
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— Roque sempre teve esse dom de enxergar o que para a maioria passa batido. Bembé é isso: o olhar dele transformado em imagem, cheio de afeto, força e verdade — afirma Pigossi.
Na mostra, estão cinco anos dedicados à investigação do Bembé, manifestação cultural e religiosa reconhecida como patrimônio imaterial da Bahia desde 2012 e do Brasil desde 2019. E que agora busca o título de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. A festa também acabou em carnaval: será tema do próximo desfile da escola de samba carioca Beija-Flor de Nilópolis. Realizada desde 1889, um ano após a abolição da escravatura no país, a prova de resistência e fé do povo preto e de santo no Brasil reúne mais de 60 terreiros e extensa programação cultural realizada em praça pública durante cinco dias. O ponto alto é o xirê, seguido pelo cortejo e pela entrega de presentes às orixás Iemanjá e Oxum, na Praia de Itapema.
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Boa Morte é testemunha e agente dessa festa desde que se entende por gente. Foi criado numa família de axé. O avô, Carlos Boa Morte, era ogã de um dos terreiros mais antigos da cidade, o Ilê Axé Iyá Oman. Sua tia-avó chegou a ser levada a um centro espírita para que a libertassem da “incorporação”. Lá, o médium deu o veredito: “Isso aí nem ninguém tira dela.” A tradição nas religiões de matriz africana seguiu por gerações. Dona Katia é mestra juremeira, líder espiritual da religião do Jurema Sagrada, culto afro-indígena brasileiro. As tias são proprietárias de um dos primeiros candomblés de caboclo da cidade, fundado na década de 1930. Mas, como tudo na Bahia é sincretismo, vale destacar a origem do sobrenome do a família:
— Vem da devoção a Nossa Senhora da Boa Morte. Meus antepassados negros tiveram alforria comprada com a ajuda da irmandade da qual eram filiados. A mãe do meu tataravô era escravizada. A irmandade era católica, mas ritualizada sincreticamente no candomblé — conta o artista. — Era tradição das irmandades negras serem um posto avançado das necessidades dos seus associados fazendo vaquinha para alforria, retirada de documentos, representação jurídica, auxílio assistencial. Por isso falamos que o 13 de maio não foi dado pela Princesa (Isabel), mas conquistado com tecnologias políticas, sociais e espirituais de sobrevivência desenvolvidas pelas populações negras.
‘Quando banquei, o mundo sorriu para mim’
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Roque Boa Morte comemora com alegria e pertencimento o olhar positivo sobre a cultura africana, mas reitera que a intolerância religiosa tá on. Já perdeu amigos e teve obras devolvidas por gente que abraçou outras religiões. Nem o Bembé do Mercado, que combate preconceito com informação, beleza e ancestralidade, escapa.
— Todos os anos, evangélicos tentam boicotar. Fazem orações de desobsessão, tentam impedir a entrega dos presentes na praia. Ano passado, colocaram panfletos dentro do alguidar de Xangô. Mas o presidente da Associação do Bembé do Mercado, José Raimundo Lima Chaves, o Pai Pote, reage com calma e paz — conta Boa Morte.
Dá para traçar um paralelo entre a história do Bembé e a do artista, como ele mesmo destaca. Formado em Direito, foi funcionário público do Estado da Bahia por anos até ter coragem de bancar ser artista. A autonomia financeira estava intimamente ligada à conquista da liberdade de poder ser quem era: um jovem gay do interior:
— Ser homossexual hoje não é como era nos anos 1980, 1990. Ter me tornado um adolescente e um pré-adulto responsável, com boa posição e dinheiro, foi decisivo para ninguém falar nada. Porque, imagina, viado e artista… Meu caminho para a luz foi como o percurso do Bembé. Antes, tudo era escuro, poucas pessoas frequentavam após a meia-noite. Era algo estigmatizado pela sociedade. Hoje é um festejo aberto a todos, que percorre caminho com iluminação pública. É como minha trajetória: uma caminhada acanhada até a coragem de dizer que sou isso, que é o que tem para hoje. Quando banquei, o mundo sorriu para mim.
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Nessa caminhada, uma mulher teve papel fundamental. Leila Carreiro, dona do tradicional restaurante Dona Mariquita, no Rio Vermelho, em Salvador, foi a primeira pessoa a apostar na arte de Boa Morte. Após ver no Instagram a foto de uma mão segurando uma figa, propôs que ele fizesse uma exposição em seu estabelecimento para marcar o tradicional Dia de Iemanjá, em 2 de fevereiro. Surgia assim a série de estreia do artista, batizada de “Figas — Mãos ancestrais”, que hoje figura nas paredes de Preta Gil, Camila Pitanga, entre outros nomes.
Diante da certeza de seu caminho, Boa Morte não pestaneja nem quando a mãe recorre ao governo Trump para pedir o retorno do filho à terra natal.
— Ela diz: “Volta, meu filho, esse homem não te quer lá.” Mas isso acentua ainda mais minha presença, me influencia a apresentar minhas obras lá — afirma. — O contato com a comunidade sul-americana que migra para o Norte me despertou um sentimento de mãe que não é só pela minha. É da vida em outro solo que nos repele. E a necessidade de um fechamento de corpo como um benzimento para que a gente consiga ir e transitar nesses mundos sem que o fio seja partido.

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