O governo Trump estava envolvido em uma confusão criada por ele mesmo, e o presidente sabia exatamente a quem culpar.
Era quarta-feira —dois dias depois da reportagem da revista The Atlantic sobre o vazamento de planos militares no aplicativo Signal— e o presidente Donald Trump falava com repórteres. Ele argumentou que o verdadeiro culpado por trás do fiasco não era outro senão Joe Biden.
“Joe Biden deveria ter feito este ataque no Iêmen”, disse Trump. “Isso deveria ter sido feito por Joe Biden. E não foi.”
Esta era certamente uma teoria nova sobre o caso. Trump parecia estar dizendo que, se Biden tivesse lançado este ataque aos houthis desde o início, então o secretário de defesa de Trump nem sequer estaria na posição de postar os planos de ataque em um grupo de bate-papo em que o editor-chefe da revista The Atlantic foi incluído inadvertidamente. No entanto, esta também era uma resposta totalmente previsível de Trump.
Uma análise conduzida pelo The New York Times revela que, durante os primeiros 50 dias no cargo, Trump mencionou o nome de Biden em média 6,32 vezes por dia. É um dos termos que ele mais usa (ele disse “Biden” em mais discursos do que disse “América”, por exemplo).
Muitos presidentes desenvolveram fixação pelo antecessor, mas quando se trata de falar sobre isso em voz alta, Trump está, como de costume, está em outro nível. É esta uma obsessão generalizada, ou há uma estratégia política em jogo de um homem que se considera um mestre do marketing e que entende o poder da repetição?
“Acho que sei exatamente o que está passando pela mente de Trump”, diz James Carville, um veterano estrategista democrata. Carville supõe que Trump tentava preparar o público para uma economia instável que pode estar no horizonte graças às suas próprias guerras comerciais. “Ele vê o que está por vir, e não pode culpar a si mesmo, então ele tem que culpar Biden”, afirma o estrategista.
A estrategista republicana Kellyanne Conway argumenta que seria negligência política não continuar batendo na tecla Biden. Ela diz que Trump, seu antigo chefe, “sabe como ler as pesquisas. Ele sabe que Biden saiu como o presidente em exercício menos popular em décadas.” Ela afirma que ele deve continuamente “lembrar a todos o que ele herdou.”
Conway se refere a questões de imigração e ao envolvimento dos EUA em guerras no exterior, entre outras coisas. Mas nem tudo que Biden deixou para Trump foi ruim. Trump também herdou um mercado de ações em alta e a economia mais forte do mundo pós-Covid.
E ainda assim, Trump transformou Biden em um bicho-papão político tão épico e onipresente que é impossível ignorar. Seu uso do nome do democrata é mais comumente seguido de um verbo: “Biden manipulou os números… Biden deixou eles escaparem impunes… Biden realmente estragou nosso país”.
“Acho que os presidentes pensam assim o tempo todo e, em particular, eles têm conversas sobre isso”, diz Julian Zelizer, professor de história na Universidade de Princeton que editou um livro de ensaios sobre o primeiro mandato de Trump. “Eles não tendem a dizer isso o tempo todo em público, e não tendem a se concentrar na pessoa, em oposição à agenda que acharam problemática.”
Ronald Reagan teve grande influência sobre a Casa Branca de George H. W. Bush. A primeira parte do primeiro mandato de Barack Obama foi consumida pela bagunça financeira que lhe foi deixada, mas ele não falava de maneira tão pessoal sobre o homem que deixou essa bagunça, George W. Bush.
“A maioria dos presidentes”, afirma Carville, “entra no cargo e diz: ‘Queremos nos concentrar no que vamos fazer, não no que aconteceu.’ A maioria das pessoas que entra quer uma agenda. Elas acham que se falarem sobre a administração passada, não estão falando sobre o futuro ou algo assim.”
Isso também costumava ser verdade para Trump. A primeira vez que ele foi presidente, ele invocou seu antecessor, Obama, muito menos do que invoca o atual, Biden. A análise do Times descobriu que durante os primeiros 50 dias do primeiro mandato de Trump, em 2017, ele mencionou o nome “Obama” apenas 35 vezes (até positivamente em alguns momentos).
Comparativamente, Trump mencionou o nome “Biden” pelo menos 316 vezes durante os primeiros 50 dias deste mandato (quase sempre de forma negativa). Isso é mais do que ele mencionou “Ucrânia” (237 menções) ou “Israel” (62 menções) durante o mesmo período, mas não tanto quanto mencionou “tarifas” (407 menções).
Por outro lado, Biden passou seu primeiro ano no cargo basicamente tratando Trump como Lord Voldemort [vilão da série de livros e filmes Harry Potter], recusando-se a pronunciar seu nome e referindo-se a ele em vez disso como “o cara anterior.”
Um ex-conselheiro sênior de Trump diz que Biden constituía uma “idée fixe” para Trump. Talvez tenha a ver com o fato de que os legados dos dois estarão entrelaçados de maneiras que não costumam ocorrer com outros presidentes e seus antecessores.
O ataque ao Capitólio dos EUA pelos apoiadores de Trump remonta à sua recusa em acreditar que foi derrotado em 2020 por Biden. E Biden, por sua vez, será lembrado como um presidente de um mandato que ajudou a trazer de volta o poder de Trump. Os dois homens compartilham a mesma parede na Galeria Nacional de Retratos em Washington; suas fotos estão de costas uma para a outra.
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