Começo esta coluna com duas afirmações que deveriam ser completamente incontroversas, mas que ainda assim, imagino, hão de provocar princípios de apoplexia em algumas pessoas. Afirmação 1: já faz ao menos várias décadas que a relação entre a Igreja Católica e a ciência é essencialmente harmônica, ao menos do ponto de vista institucional. Afirmação 2: o papa Francisco transformou essa relação já pacificada em algo muito próximo de uma colaboração, em especial acerca do que realmente importa para a humanidade.
O que significa que não só católicos e pessoas de boa vontade em geral como também cientistas do mundo todo deveriam dar um suspiro de alívio diante da recente recuperação da saúde de Francisco. Num mundo em que o debate público foi ficando cada vez mais poluído por extremismos e maluquices, o pontífice argentino buscou mesclar respeito às evidências e compaixão. Não é pouca coisa.
Jorge Mario Bergoglio mostrou a profundidade de seu compromisso com essa fórmula dupla em 2015, com a publicação da encíclica ambiental “Laudato Si’”. Hoje, as encíclicas estão entre os documentos mais importantes do chamado magistério papal –ou seja, o que os papas, enquanto “professores” dos fiéis católicos, têm a ensinar.
Acontece que toda a primeira parte da “Laudato Si’” poderia muito bem fazer parte de uma publicação do IPCC, o painel do clima das Nações Unidas. Antes de mais nada, Francisco e seus colaboradores apresentaram com clareza e senso de urgência o que a humanidade descobriu sobre o buraco (ainda) sem fundo da crise climática e da perda de biodiversidade.
Ou seja, para usar o jargão das publicações científicas, o documento papal começava com uma grande “revisão da literatura” sobre o tema. Mas, é claro, não se detinha nisso.
Partindo da doutrina judaico-cristã da Criação –mas sem o literalismo bíblico dos que ainda enxergam um Cosmos feito a partir do zero em seis dias–, a encíclica traçou o retrato de uma Terra que é, por sua própria natureza, finita, como a ciência também mostra. O corolário lógico disso, para qualquer um que não esteja agarrado às tetas de bruxa do crescimento econômico infinito, é que precisamos imaginar outra maneira, muito mais humilde, de lidar com a “casa comum” planetária.
Além disso, ao contrário de tantos outros líderes religiosos, Francisco não minimizou em momento nenhum a tragédia da Covid-19, não atacou as medidas necessárias para conter a transmissão e descreveu a vacinação como “obrigação moral” e “ato de amor”.
É seguro dizer que, ao menos por ora, o papa fez tudo isso remando contra a maré crescente de negacionismo da extrema direita global. Ainda assim, não se deve menosprezar o efeito positivo modesto da “Laudato Si’”, disse-me o colega Claudio Angelo, coordenador de política internacional do Observatório do Clima.
“A encíclica teve um papel relevante nos processos que permitiram a criação do Acordo de Paris, e é graças ao acordo que há cada vez mais carros elétricos nas ruas do Brasil, ou que há cada vez mais energia solar. A ‘Laudato Si’’ não resolveu o problema, lógico. Foi uma boa tentativa, que ficou para a história.”
Não dá para pedir muito mais do que isso a um único homem, mesmo que ele tenha o emprego que foi de são Pedro.
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