Um ministro de Lula se uniu à oposição por uma causa nobre: contribuir para a defesa da Pátria e o desenvolvimento nacional. Para alcançar o objetivo, eles propõem destinar mais dinheiro às Forças Armadas.
Quanto dinheiro? A ideia é quase dobrar o orçamento atual. Inscrever, na Constituição, que a União é obrigada a repassar ao Ministério da Defesa pelo menos 2% das riquezas que o país gera a cada ano.
De onde virão os recursos? Os autores da ideia não explicam. Não mencionam remanejamento de verbas ou outra origem. Mas não é difícil concluir que, se uma fração maior da produção nacional será entregue a instituições do Estado, a fonte tende a ser a de sempre: o bolso do pagador de impostos.
No ano passado, o Ministério da Defesa recebeu R$ 126 bilhões, o equivalente a 1,1% do Produto Interno Bruto (PIB). Quase R$ 97 bilhões – mais de três quartos do total – foram gastos com salários, aposentadorias e pensões. Uns R$ 20 bilhões bancaram custeio e outras despesas. Sobraram menos de R$ 10 bilhões para investimentos, que são os desembolsos capazes de reequipar as Forças Armadas.
A proposta assinada por um grupo de 30 senadores, em sua maioria oposicionistas, é ampliar o orçamento militar para no mínimo 2% do PIB. O ajuste ocorreria de forma gradual, com acréscimo de 0,1% do PIB a cada ano. Ao fim da transição, as Forças Armadas teriam direito a R$ 235 bilhões por ano, em valores de 2024.
E por que 2% do PIB? Porque é o mínimo que a Otan recomenda a seus países-membros.
A título de referência: em 2024, ano da maior carga tributária da história, o governo federal dispôs do equivalente a 18,4% do PIB em receitas, já descontadas as transferências a estados e municípios. E gastou 18,8% do PIB. A diferença foi coberta por novas dívidas, como ocorre desde 2014.
A proposta de emenda constitucional que impõe o gasto obrigatório com a Defesa estava parada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado desde novembro de 2023, mas ganhou um relator no mês passado: o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (PT-AP). Também é do governo aquele que talvez seja seu maior entusiasta: o ministro da Defesa, José Múcio.
O ministro e outros defensores da PEC 55/2023 a chamam de PEC da Previsibilidade. Querem garantir que a Defesa não sofra cortes mesmo em caso de piora das contas públicas. A justificação da proposta cita uma frase de Rui Barbosa: “Esquadras não se improvisam”.
Nos bastidores, o que se diz é que a ideia de fixar a verba das Forças Armadas em relação ao PIB pode dar lugar a outro tipo de vínculo: um percentual da arrecadação, como ocorre com saúde e educação, por exemplo. A indexação à receita não é inocente. Costuma minar oportunidades de poupança, pois força o Estado a gastar mais sempre que consegue arrecadar mais – e o contribuinte sabe como essa ciranda gira.
Investimento em Defesa despencou na última década. Nas outras áreas, também
Para os militares, o mais importante não seria a cifra, e sim a certeza que haverá um valor mínimo. “Nós não temos previsibilidade orçamentária, ficamos dependendo da responsabilidade de quem faz o Orçamento”, declarou Múcio no início do mês. No ano passado, o senador Carlos Portinho (PL-RJ), autor da PEC, reclamou que “os primeiros cortes no Orçamento sempre miram a área de Defesa”.
As queixas têm fundamento, mas devem ser colocadas em perspectiva.
Os militares apontam, com razão, que o investimento na área despencou na última década. O desembolso na função defesa nacional caiu de 0,18% do PIB em 2014 para 0,08% do PIB em 2024.
O corte, porém, não recaiu apenas sobre as Forças Armadas. O investimento da União em todas as áreas – gastos com máquinas, equipamentos, obras – baixou pela metade no mesmo período, de 1% para 0,5% do PIB.
Embora sua fatia no bolo tenha diminuído um pouco, a Defesa ainda é dona da segunda maior verba de investimentos, atrás apenas da função transportes (rodovias, ferrovias, portos, aeroportos). Mais que isso, só no governo Bolsonaro, quando ocupou o primeiro lugar da lista. E mesmo naquela época o gasto não foi muito maior: oscilou de 0,11% do PIB em 2019 para 0,08% em 2022, patamar igual ao atual.
Apesar do declínio, a Defesa ainda recebe mais verba de investimento que setores como urbanismo, educação, saúde, segurança pública, ciência e tecnologia, saneamento e outros.
“Vítimas” de gastos obrigatórios em outras áreas, Forças Armadas querem se juntar ao inimigo
No orçamento público, investimento é a despesa que mira um retorno futuro: melhora de infraestrutura, tecnologia, ampliação de capacidade produtiva. No longo prazo, menos investimento leva à piora do serviço que o Estado presta ao cidadão.
E por que o governo, não importa quem ocupe a cadeira da Presidência, investe tão pouco? Porque quase todo o dinheiro vai para despesas obrigatórias. Aposentadorias, salários, abono salarial, seguro-desemprego, benefícios assistenciais, subsídios e outras.
Cada nova regra que impõe uma despesa engessa um pouco mais o orçamento. O governo Lula, por exemplo, matou o arcabouço fiscal no mesmo momento em que o criou, ao restabelecer o reajuste obrigatório do salário mínimo, retomar os pisos de gastos com educação e saúde e ampliar o Bolsa Família. E agora admite que já em 2027 não terá espaço fiscal para cumprir tudo isso, pois há um limite legal para o crescimento das despesas.
O Congresso também fez sua parte ao criar, entre outras coisas, as emendas impositivas. Parte delas vai para investimentos, mas em geral são gastos picotados, não estruturados, com retorno limitado para a sociedade.
Para dar conta do que se obrigou ou foi obrigado a gastar, o governo corta onde dá: no custeio e nos investimentos. A Defesa é vítima desse arranjo, tanto quanto as outras áreas prejudicadas. Já que não conseguem vencer o inimigo, as Forças Armadas querem se juntar a ele, engrossando as fileiras dos gastos obrigatórios.
Cumprir a PEC obrigará a União a arrecadar mais ou remanejar gastos. Falta aos autores da proposta indicar os alvos. Levar o orçamento das Forças Armadas a 2% do PIB exigiria providenciar R$ 108 bilhões, em valores de 2024. É praticamente um BPC, benefício assistencial pago a idosos e pessoas com deficiência que consumiu R$ 111 bilhões no ano passado. O Bolsa Família, em comparação, custou R$ 168 bilhões.
Os gastos com o BPC se descontrolaram nos últimos anos, à força de decisões judiciais e afrouxamentos nos critérios de enquadramento. No fim do ano passado, quando a Fazenda tentou apertar as regras do benefício e limitar os repasses públicos ao Fundo Constitucional do Distrito Federal, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) ameaçou acampar no Senado. Ela é uma das signatárias da PEC da Previsibilidade.
PEC fixa conteúdo nacional nas Forças Armadas; prática é “veneno”, diz economista
A PEC da Previsibilidade tem outro ponto discutível: a imposição de conteúdo nacional, de no mínimo 35%, nos projetos militares ditos “estratégicos”. A ideia é fortalecer as empresas, estatais ou privadas, que compõem a “Base Industrial de Defesa”, “gerando emprego e renda e contribuindo decisivamente para o progresso científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação”.
Como ficou demonstrado no caso do petróleo, obrigações de conteúdo local tendem a favorecer principalmente empresários interessados em se aproximar do Estado – e, não raro, intermediários dessa aproximação. Quem é obrigado a comprar, por outro lado, paga mais caro e não necessariamente pelo melhor produto, uma vez que a lei elimina a competição.
Segundo o projeto, o gasto previsto pela PEC tem efeito multiplicador de 9,8, o que significa que cada R$ 1 aplicado supostamente adiciona R$ 9,8 ao PIB. Para o economista e pesquisador Marcos Mendes, essa estimativa é “para além da fantasia”. “A literatura mostra que gastos militares têm multiplicador de, no máximo, 1,5, e, na média, 0,8! E os efeitos são temporários”, escreveu Mendes em artigo recente.
Organizador do livro Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil, Mendes define a política industrial baseada em encomendas públicas e conteúdo local como um “veneno para o crescimento que dá errado há 70 anos”.
Por isso, ele vê a PEC 55/2023 como mais uma “típica escolha pública que empobrece o país”. Outra política que o país deveria abandonar, mas insiste em repetir.
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