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Misoginia é variante primal do racismo – 22/03/2025 – Muniz Sodré


Se a distância mais curta entre dois pontos não é mesmo a linha reta, e sim o ponto de vista, vale aplicar esta regra poética a dois recentes e distantes acontecimentos chocantes. Primeiro, a revelação por uma ativista afegã de que, as mulheres em seu país, proibidas de trabalhar, estudar, cantar e andar sozinhas nas ruas, agora têm de abafar os sons dos saltos de sapato. Segundo, uma atriz brasileira a bordo de avião norte-americano foi brutalmente coagida a ceder o assento preferencial, pelo qual havia pagado sobretaxa, a um passageiro deslocado da classe executiva. Mulher sozinha, o motivo covarde.

O ponto de vista apoia-se na evidência de recrudescimento mundial do antifeminismo. Se racismo e misoginia são variantes de um mal-estar civilizatório, pode-se talvez atribuir maior peso à segunda. O racismo começa a ser coibido na esfera pública, mas o ataque à condição feminina persiste em público e em privado.

Na quase totalidade dos países islâmicos, uma política de Estado misógina vê mulher como outra espécie humana. A violência simbólica desdobra-se em números amplos ao plano físico. Entre nós, enquanto a cada 17 horas ocorre um feminicídio, ascendem as estatísticas de estupro. Nos EUA, “feminismo” e “pessoas grávidas” integram a lista trumpista de palavras proibidas.

O fenômeno agrava-se em meio à intensificação da luta feminina por conquistas civis. O fato social mais relevante do século passado foi a incorporação massiva de mulheres ao mercado de trabalho, ao lado da tomada de consciência de seu papel sob o patriarcado. Mas os avanços institucionais não atenuam aspectos obscuros e negativos na imaginação arquetípica do feminino. “Arquétipos” não designam imagens eternas, mas regras de representação do que não se vê, isto é, do que se imagina.

São “modelos de duração variável que persistem através dos sistemas sociais e até mesmo de civilizações diferentes” (Raymond Ledrut em “La Révolution Cachée”), com peso considerável sobre os modos de pensar. O patriarcado leva a conceber uma divisão antropológica entre homens e mulheres, como se fossem raças diversas. Isso aflora nos discursos feministas.

Entretanto, há algo maior enraizado na personalidade masculina, que é o “arquétipo” feminino, uma representação ativadora de energia vital, ou libido. Nas potencialidades expressivas do corpo e do sexo, o imaginário articula como desejo as imagens arquetípicas de gênero. Mas também uma forma cultural de existência, permeável aos sistemas sociais. Os dois planos interligam-se por laços societários (econômicos, jurídicos) e sensíveis, onde predominam imagens camuflantes do machismo.

Mas o sensível vislumbra mudanças no arquétipo. Por isso, nas ditaduras islâmicas, a alteridade feminina, objeto de medo primal, é sufocada por tortura lenta até o apagamento público de sua imagem. E na tortura, em que nada mais se deseja senão a morte do outro, até o sexo opressivo prescinde de desejo. O mesmo ocorre no extremismo (Trump, Orban, integristas religiosos) incubador de misoginia.

O Ocidente democrático aguardava um futuro radioso para a questão. Mas o século 21 cancelou o futuro: o temor/tremor patriarcal ante as alterações do arquétipo suscita ódio e violência. Na ultradireita, assim como a bordo do avião. Dessa vez, mexeram com a mulher errada. Acontece.


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