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Negar tentativa de golpe no 8/1 é ataque ao direito – 20/03/2025 – Ilustríssima

[RESUMO] O autor sustenta que a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 não pode ser relativizada e que há fatos incontroversos. O texto expõe que crimes de empreendimento tornam a tentativa equivalente à consumação; há provas documentais e testemunhais do planejamento; o STF já reconheceu a tentativa em mais de 380 processos; e a questão do foro está decidida. Diante disso, argumenta, negar os fatos é alimentar o senso comum contra a ciência jurídica.

No filme “Negação“, de 2016, adaptado da obra de Deborah Lipstadt e inspirado em um caso real, o historiador David Irving processa a autora por difamação por ela o ter acusado de negar o Holocausto. Por circunstâncias do sistema inglês, Lipstadt precisa demonstrar que o genocídio de judeus realmente aconteceu e que Irving é um negacionista. A certa altura, a professora, entre angústia e sarcasmo, pergunta a seus advogados: “E se não conseguirmos provar o Holocausto?”.

O filme trata do embate entre negacionismo e evidência e a consequente resistência à desinformação. Contra isso, a comunidade jurídica produz consensos que perfazem as certezas mínimas do que se deve saber sobre algo. Consensos, no entanto, esbarram em desacordos.

Por isso, esses desacordos devem ser razoáveis. O Holocausto existiu. O homem pousou na Lua. Em 1964 houve um golpe no Brasil. Vacinas não causam autismo. Não é razoável negar esses fatos. Lembram de Carla Zambelli postando que a “Havan era da filha da Dilma”?

E a tentativa de golpe de 8 de janeiro? É razoável negar? É possível construir narrativa negando o fenômeno? É possível dar às coisas o nome que queremos?

A ver. Depois de dois anos, surgiu a denúncia, uma peça técnica de acusação. São 34 envolvidos, dos quais um é o ex-presidente Jair Bolsonaro, com a acusação de cinco crimes, dois deles inéditos no Brasil: tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático.

Com mais de 250 páginas, como um romance em cadeia, termo técnico criado pelo maior jurista do século 20, Ronald Dworkin, a peça contém início, meio e fim, com os capítulos formando um todo coerente. Para isso, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, faz uma autêntica anamnese do golpe, tendo como norte o bem jurídico democracia.

Para explicar: no furto, o bem protegido é a propriedade; na tentativa de golpe, é a democracia. Por isso, Gonet parte do ovo da serpente: os acontecimentos de 2021 (como ameaças golpistas de Bolsonaro ao STF no 7 de Setembro) e de 2022 (reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada em que o ex-presidente repetiu teorias da conspiração para desqualificar as urnas eletrônicas) visavam o esfarelamento democrático. O sentido da metáfora do romance em cadeia é o da coerência; as coisas não se dão em fatias.

Temos, assim, revelações oriundas de inquérito e delação premiada, um conjunto de elementos que, segundo Paulo Gonet, demonstram o cometimento dos crimes de organização criminosa, dano patrimonial, deterioração, tentativas de golpe e de abolição.

Há minutas do golpe, as reuniões de Bolsonaro com ministros de Estado e comandantes das Forças Armadas para falar sobre golpe, a participação dos kids pretos no 8/1, a disseminação articulada sobre fraude nas eleições, o monitoramento e o plano para matar o presidente eleito, Lula (PT), o vice, Geraldo Alckmin (PSB), e um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Alexandre de Moraes.

Sobre a tomografia dos atos que culminaram no 8/1 —vejam que uso a expressão culminaram, porque já possuíam existência jurídica própria independentemente do 8/1—, a denúncia mostra que a organização criminosa seguiu todos os passos necessários para depor o governo eleito. Objetivo que, buscado com todo empenho e realizações de atos concretos em seu benefício, não conseguiu, porém, alcançar o intento.

Ao que se percebe, tecnicamente Gonet usa a teoria objetiva do plano do autor, que é dominante e se encaixa bem no caso, afirmando o início de execução não por um ato isolado, mas pelo conjunto dos fatos vinculados ao objetivo final.

O senso comum e a compreensão do fenômeno “golpe”

Se alguém planeja assaltar um banco, compra material, faz um plano e desiste, nem tentou assaltar, porque foram só atos preparatórios, não puníveis. Correto.

No entanto, esse raciocínio não pode ser aplicado ao crime de tentativa de golpe. No senso comum, os atos de planejamento, campana, mapeamento etc., no caso de não ter havido o golpe, são como “o caso do assalto ao banco”. Portanto, não deveriam ser punidos.

Pois é aqui que o senso comum precisa da ciência jurídica: a isso se chama de “crimes de empreendimento”. O tentar já é o consumar. Só pensar em fazer um golpe não é crime; porém, começar a fazer qualquer coisa para tentar o golpe já incrimina o agente.

Essa dificuldade de compreensão faz surgir lendas que vitaminam a negação do golpe. Muitas das condutas, tomadas individualmente, são ações neutras, mas, no conjunto, constituem início de execução de tentar derrubar o governo eleito. Há um conjunto da obra.

Há mais. O fato de não precisarmos esperar o golpe para dizer “isso foi golpe” é uma questão de lógica. No direito, em alguns casos se antecipam as barreiras da punição, porque, de antemão, as condutas já são consideradas perigosas para o bem jurídico, isto é, tanto faz que a pessoa realize todo o caminho do crime para que ocorra a punibilidade. Por isso, a lógica: só se pune a tentativa —como crime consumado.

Claro que as lendas são vitaminadas cotidianamente, como se viu na fala do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que pôs lenha na fogueira ao negar que 8/1 foi tentativa de golpe. Isso alimenta o faminto senso comum. Basta ver a criminosa hermenêutica do artigo 142 da Constituição Federal, pelo qual as Forças Armadas seriam Poder Moderador.

Assim como a nota de 11 de novembro de 2022 dos comandantes militares, feita, segundo Gonet, a mando de Bolsonaro, em que defendiam os manifestantes que pediam golpe. Aqui talvez esteja uma omissão da denúncia: os comandantes cometeram crime ao assinarem a nota.

O que é isto –o “suposto golpe”?

De novo, a ciência. Há coisas em direito que, julgadas, tornam-se incontroversas. Direito é assim. Isso deveria esclarecer lendas. Por exemplo, o uso da palavra suposto por parte da imprensa. No caso, há um equívoco que ajuda a criar negacionismos.

Já não há suposta tentativa. E isso por uma razão técnico-jurídica que não depende de desacordos: nos mais de 380 processos julgados, o STF já afirmou a existência da tentativa de golpe. Causa finita. Já não é mais uma questão de opinião.

Do mesmo modo, o STF já disse mais de 380 vezes que é competente para julgar, ou seja, o lugar em que o julgamento deve ocorrer. Portanto, juridicamente é causa finita. De todo modo: depois que o inquérito foi gerido pelo STF, por que o foro desceria ao primeiro grau?

Também a tentativa de anular a participação de Alexandre de Moraes já não depende de discussões. O STF já decidiu que suspeição para ministro do STF, nesse caso, é matéria vencida. Você pode não concordar, é verdade. Mas, isso não muda o que está decidido. Vi um alto membro do Ministério Público criticar duramente Moraes. Ele não sabe como funciona o direito?

Também a delação de Mauro Cid vitamina controvérsias. Ocorre que delação não é prova. É meio de prova. E o acordo foi feito com a polícia, não com o juiz. Tecnicamente é isso.

Outra questão técnica: a denúncia de Gonet é posterior à alteração regimental 59, de dezembro de 2023, do STF. Naquela ocasião determinou-se que a primeira turma do tribunal é competente para julgar pessoas com foro por prerrogativa de função, assim como os casos em que a competência originária é do STF, como é exemplo a tentativa de golpe em questão, cuja investigação teve origem no inquérito aberto em 2019 pelo ministro Dias Toffoli, então presidente da corte, e cujo relator é Alexandre de Moraes.

Assim, há fatos. Incontroversos. O que resta agora é saber, apenas, qual foi a participação de cada um dos 34 denunciados. Isso sim é discutível. Denúncia não é sentença. Muita calma. Esperemos o devido processo legal. Assim é o direito.

As defesas prévias dos acusados e a resposta de Gonet

Nada de novo surge da resposta à acusação subscrita pelo procurador-geral. As já conhecidas teses de defesa dos acusados foram rebatidas de forma abrangente.

Uma delas, levantada por Bolsonaro, a da aplicação do juízo de garantias ao caso, foi descartada por Gonet por impossibilidade sistêmica. A separação do juiz da instrução do juiz do julgamento é impossível nos casos em que o foro é “privilegiado”. Mormente no caso do STF. Afinal, se o STF trata da instrução, quem julgaria?

Uma palavra final

O 8/1 é produto de relativismos de todos os tipos, mas sobretudo da relativização dos limites da hermenêutica jurídica. Vejam-se as patacoadas do artigo 142 e a nota de 11/11.

O direito e a democracia existem porque há limites. E, uma vez que deixamos esses limites serem relativizados, o preço pode ser alto. Na conta, declarações como as de Hugo Motta, que nega centenas de decisões da Suprema Corte do país em que ele, Motta, é presidente da Câmara.

Volto ao filme “Negação“. A professora processada, em certo momento, sentiu-se abandonada pelo direito. E um detalhe é relevante: a defesa da professora ficou com medo de que o júri fosse manipulado pelos negacionistas, uma vez que o negacionismo pode ser um fenômeno coletivo.

Na época do livro, 22% dos americanos duvidavam do Holocausto. No Brasil, em dezembro de 2024, segundo o Datafolha, 52% dos entrevistados acham que Bolsonaro tentou dar um golpe para seguir na Presidência, enquanto 39% não acreditam na hipótese.

Como se demonstram os fatos? Esse é o grande desafio contra o senso comum. Dar às coisas os nomes certos.

Como se prova que quem invade poderes da República —e quem incentiva, e quem arquiteta, e quem financia— tentou dar um golpe? Há vídeo, cadernos, planos impressos, áudios.

O Brasil, porém, está disposto a dizer o nome da coisa?

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