Após se tornar a vereadora mais votada em Belo Horizonte em 2016 e repetir o feito entre as deputadas federais em Minas Gerais em 2018, as duas vezes pelo PSOL, Áurea Carolina decidiu não concorrer à reeleição em 2022.
Hoje, à frente do movimento Nossas, que busca promover iniciativas de justiça climática, racial e de gênero e apoiar novas lideranças políticas, ela diz ver nas estruturas partidárias uma barreira para impedir o surgimento de lideranças femininas.
“De certa forma, é autorizado socialmente que os partidos sejam esse lugar de destroçar mulheres. A disputa interna é muito violenta, e falo de todos os espectros. As mulheres têm muita dificuldade de se estabelecer como lideranças”, afirma a ex-deputada em entrevista à Folha.
Além das disputas em que saiu como vencedora, Áurea foi candidata à Prefeitura de Belo Horizonte em 2020 e ficou em quarto lugar, com 8,3% dos votos, em pleito vencido por Alexandre Kalil (à época no PSD).
Em texto na revista piauí em 2023, a ex-deputada disse que a decisão de não concorrer mais ganhou força a partir daquela eleição. Em meio a tentativas frustradas de articulação para uma frente ampla de esquerda, ela participou do pleito durante o puerpério e relata que teve crises de pânico depois.
A ex-parlamentar também citou à publicação uma decepção com as traições de pessoas que tinha como aliadas na Câmara dos Deputados, local onde sofreu um aborto espontâneo durante a cerimônia de posse, em 2019.
Áurea integrou o grupo de transição do governo Lula (PT) na área de cultura, mas hoje diz ver como insuficientes o avanço da agenda de gênero sob o presidente.
A sra. esteve no Congresso durante o governo de Jair Bolsonaro e agora apoia, de fora, iniciativas políticas durante a gestão Lula. Houve evolução para as mulheres na política nesse período?
É difícil avaliar se melhorou ou piorou, eu acho que está mais complexo. O crescimento da bancada feminina, por exemplo, na Câmara dos Deputados, mostra que são parlamentares de perfil mais conservador, de partidos de centro-direita, que não defendem agendas feministas. Mas só por ter mais mulheres em si, ocupando mais espaço, já é bom.
Como vê o crescimento dessa bancada feminina mais conservadora, tanto no Congresso quanto nas câmaras municipais, em relação à pauta de gênero?
Na minha experiência, é possível ter uma aproximação e um diálogo entre mulheres em posições divergentes, sem ilusão, mas que é sincero. Aconteceu quando eu fui vereadora.
No Congresso, as coisas são decididas no bastidor, nos jantares na casa do presidente da Câmara, em noitadas regadas a muita bebida, onde as mulheres raramente estão. Eu acho que mesmo sendo mulheres conservadoras de extrema direita, existe um laço possível de se criar, de conversar sobre nossas perspectivas, histórias.
No Congresso, as coisas são decididas no bastidor, nos jantares na casa do presidente da Câmara, em noitadas regadas a muita bebida, onde as mulheres raramente estão
Em 2023, a sra. escreveu um artigo na revista piauí detalhando suas razões para não disputar a reeleição. Hoje, quase dois anos depois, como reflete sobre aquela decisão?
Fiz questão de dar meu testemunho para que não fosse um fardo pessoal, solitário, apenas. Porque muito do que vivi é recorrente na história de tantas outras mulheres, não apenas progressistas.
A política dos homens é feita na negligência dos cuidados, porque tem quem faça o trabalho por eles, quem vai deixar o terno prontinho para ele estar de manhã preparado para ir para uma audiência.
Quando eu falei que não iria concorrer, foi no sentido de ter o direito de dar um tempo, priorizar o meu bem-estar, minha família. Isso também é uma decisão legítima, e várias mulheres vieram me dizer o quanto que foi encorajador ler meu depoimento.
Como melhorar esse cenário desafiador para mulheres na política partidária?
Temos que refletir o quanto o fazer da política institucional é viciado. As sessões da Câmara [dos Deputados] de terça e quarta-feira costumam ir até madrugada adentro sem intervalo.
Para uma mãe amamentando, como foi o meu caso, é um terror, porque não é um ambiente para levar um bebê, mas às vezes é preciso. Estabelecer horário de funcionamento de um plenário, por exemplo, seria o mínimo. Coisas de legislação trabalhista para parlamentares, porque nisso não há privilégio.
É triste ver que o Brasil não consegue cumprir minimamente a lei de cotas, nem a destinação de recursos para as candidaturas de mulheres. E como é, de certa forma, autorizado socialmente que os partidos sejam esse lugar de destroçar mulheres.
A disputa interna é muito violenta, e em todos os espectros. As mulheres têm muita dificuldade de se estabelecer como lideranças, aquelas que se estabelecem muitas vezes reproduzem práticas da política convencional, porque é assim que conseguem sobreviver nesse ambiente. Vira um círculo vicioso em que a gente não tem para onde correr.
A sra. e o Nossas fizeram campanha para a indicação de uma mulher negra para o STF (Supremo Tribunal Federal), o que não aconteceu. Como avalia as atitudes do presidente em relação a pautas de gênero?Lamentáveis, porque tem uma coisa que pode não ser intencional, mas que está latente, que é exemplificar a tortura das mulheres. Quando elas são expulsas desses espaços, isso comunica uma mensagem muito eficiente [para desencorajar mulheres na política].
Eu acho muito triste que esse governo não tenha conseguido [avançar na pauta de gênero]. É de frente ampla, que tem lidado com contradições numa conjuntura global de avanço de extrema direita, de guerras. No entanto, é muito ruim que as concessões sejam feitas sempre por esse lado, que é o lado historicamente mais frágil.
RAIO-X | ÁUREA CAROLINA, 41
Mãe, ativista, ex-parlamentar e diretora-executiva do Nossas, movimento voltado ao fortalecimento da democracia com foco em justiça climática, racial e de gênero. Mestra em ciência política e especialista em gênero e igualdade, integrou a transição do governo Lula em 2022, contribuindo para a recriação do Ministério da Cultura.
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