Se toda tradição é inventada, louros a seus inventores. Paulinho da Viola o é. Em seus quase setenta anos de carreira, o cantor, compositor e instrumentista carioca construiu um repertório de samba entre reverência e referência. Tal um arquivista que também cria, tornou-se ele mesmo baliza da música brasileira. “Um padrinho que pede a benção”, como disse Monarco da Portela reiteradas vezes.
O show “Quando o Samba Chama”, que Paulinho leva a sete cidades do país neste ano, é oportunidade de testemunhar o mestre entre mestres. Neste sábado foi a vez de São Paulo, onde o sucesso do espetáculo obrigou o artista a abrir uma segunda data. Uma apresentação com clássicos da sua obra, faixas menos conhecidas do álbum que dá nome à turnê e uma ode à época de ouro do samba — da qual Paulinho é caçula.
O concerto tem pouco mais de hora e meia e vinte canções de um espectro vasto do samba que vai dos anos 20 até os anos 80. Entre uma faixa e outra, Paulinho conversa ao microfone. Sem pretensão, ele fala de gente como Jacob do Bandolim, Zé Ketti, Cartola e Dona Ivone Lara como se falasse de amigos em reuniões na sala de casa ou bate-papos em botequins — encontro de gerações que se reflete na sua rendição das músicas.
“Coração Leviano”, ao vivo, soa como um samba amaxixado próprio a um chorão com vasto repertório. Em “Novos Rumos”, Paulinho e banda conseguem amealhar o choro e o bolero em uma junção difícil de complexidade de um e intensidade de outro. Com seu violão, o instrumento que lhe deu nome artístico, o músico faz um samba cool jazz em “Quando o samba chama”.
Exímio letrista e instrumentista, Paulinho brinca com as melodias ao vivo para realçar suas palavras. No samba que questiona o próprio samba, “Argumento”, ele acentua a ausência dos instrumentos de que é partidário para fazer valer seu ponto de vista. Já em “Hoje Quero Ver as Meninas”, silencia ao cantar o trecho da letra que fala de compassos em pausa.
Nem tão prestigiado por seu trabalho como arranjador, Paulinho é um regente tímido e certeiro no álbum que dá nome à turnê. Na versão ao vivo de “Filosofia do Samba”, composta por Candeia, é evidente como o maestro com cavaco privilegia um conjunto elegante de cordas, sopro e percussão — destaque para o percussionista Celsinho Silva e seu tapa seco no pandeiro.
A falta do coro, encoberta pelo auxílio vocal de um ou outro instrumentista, é sensível na seção de partido-alto do show aberta por “Pra jogar no oceano”. Não é nada que descarrilhe o trem do samba do artista. As engrenagens do conjunto de Paulinho são azeitadas, e se beneficiam do violão do filho, João Rabelo, e da voz da filha, Beatriz Rabelo. Cabe a ela a bela suíte que homenageia Dona Ivone Lara, Clara Nunes e Clementina de Jesus.
O show fecha com os maiores sucessos de Paulinho. “Pecado Capital”, originalmente trilha sonora de novela, é o momento menos contemplativo do show, seguido por “Foi um rio que passou em minha vida” e o bis, com “No pagode do Vavá” — parte da plateia que assistira ao show sentada finalmente se levantava nesse momento.
E ainda que fosse só esse o pagode: já seria um respiro numa época em que o pagode, como braço do samba na indústria, tem poucos nomes originais. Num contraponto, é a retidão do canto e a ousadia da caneta de Paulinho que o fazem soar mais inovador que grupos com versões pueris de música pop e versos sobre bloquear contato no WhatsApp.
Prova é “Dança da Solidão”, de 1972, uma cantiga com jeito de samba de roda. Diz a velha cantilena que saudade é uma palavra que só existe em português. Pois talvez samba bom só exista com saudade. Paulinho da Viola, em palco, faz música com saudade do que o samba foi e do que ele ainda pode ser.
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