Se na bossa nova Tom Jobim cantava que “chega de saudade”, nos consultórios de psicologia esse sentimento pode ser muito mais do que bem-vindo. Segundo uma nova pesquisa brasileira, induzir a transformação de sentimentos negativos nessa emoção pode ser uma estratégia para reduzir sintomas de melancolia e depressão.
Para Jorge Moll Neto, neurocientista do IDOR Ciência Pioneira e primeiro autor do estudo, essa é uma intervenção simples, capaz de levar a resultados positivos já com uma semana de tratamento. “Isso sugere que a saudade pode servir como canal de ressignificação emocional”, afirma.
Para avaliar as hipóteses, os responsáveis pela pesquisa envolveram no projeto 39 participantes avaliados com sentimentos fortes de autocrítica, um aspecto que aumenta a vulnerabilidade individual à depressão motivada pela culpa por eventos passados.
Todos foram instruídos a criar um vídeo de 10 minutos com fotos, imagens e músicas que evocassem, em um primeiro momento, sensações de tristeza e, em seguida, de saudade. Então, foram orientados a assistir ao material confeccionado diariamente por uma semana, com o objetivo de refletir sobre as emoções experimentadas e associá-las à saudade como um sentimento mais construtivo e afetivo.
Em primeiro lugar, a proposta revelou um engajamento alto entre os voluntários, dos quais apenas três abandonaram a pesquisa. Além disso, a intervenção reduziu a intensidade e a frequência dos sintomas de autocrítica dos participantes, que foram avaliados por meio de questionários especializados e um sistema de pontuações objetivo.
Entre as limitações da pesquisa, não houve randomização ou grupo controle de pacientes, o que restringe conclusões causais. Além disso, trata-se de uma amostra não clínica, isto é, sem diagnóstico de transtornos mentais. Também merece destaque a participação mais baixa de homens. Mas espera-se que todas essas limitações sejam superadas em pesquisas futuras.
O especialista conta que o interesse pelo tema surgiu da busca por alternativas para pessoas que não respondem bem aos tratamentos convencionais. Embora presente na cultura brasileira e nas artes, a saudade, segundo ele, é pouco explorada na psicologia.
Nesse ramo do conhecimento, embora haja divergências entre diferentes linhas, a saudade pode ser definida como um sentimento de conexão afetiva com o passado, que envolve certa medida de tristeza, mas também amor, gratidão e significado, capaz de reforçar ideias de pertencimento e aceitação.
Neurologicamente, envolve regiões ligadas à memória autobiográfica, como o córtex frontoparietal, os hipocampos e o precuneus, além de estruturas relacionadas à experiência emocional, como regiões do prosencéfalo basal.
Apesar de muitas vezes não ser descrita como puramente positiva, Ricardo Dias de Castro, psicólogo e professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia), ressalta que a saudade pode ter efeitos positivos importantes de estabilização emocional e reforço do significado da vida.
“Ela não é boa ou ruim por natureza. A sensação de como as coisas nos atravessam no passado tem a ver com as histórias da nossa vida no momento presente. Pode ser uma boa forma de avaliar como a gente tem construído a nossa existência e pensar em um projeto de vida”, diz.
Ela [a saudade] não é boa ou ruim por natureza. A sensação de como as coisas nos atravessam no passado tem a ver com as histórias da nossa vida no momento presente. Pode ser uma boa forma de avaliar como a gente tem construído a nossa existência e pensar em um projeto de vida
Além dos resultados positivos, o trabalho também chama a atenção da comunidade científica por sua originalidade ao usar a saudade como intervenção terapêutica estruturada. Além disso, o estudo mostrou alta adesão e segurança, sem nenhum evento adverso, como angústia, relatado pelos participantes.
Poucos são os estudos anteriores que analisam a saudade e a nostalgia como ferramentas terapêuticas. Um deles foi publicado na revista Journal of American College Health e avaliou os efeitos da indução de nostalgia entre 148 estudantes americanos com depressão.
No trabalho, os pesquisadores buscaram ressignificar a experiência dos participantes em relação ao centro de aconselhamento do campus universitário, aos efeitos do estigma da doença e aos níveis de depressão em amigos ou familiares. Os resultados mostraram que, em comparação com um grupo controle, a saudade com aspectos positivos melhorou a percepção do grupo sobre o centro de aconselhamento do campus e aumentou a intenção dos jovens em buscar ajuda profissional.
Outra pesquisa, publicada na International Journal of Mental Health Promotion, mostrou que uma intervenção terapêutica baseada na promoção da nostalgia levou a melhoras em diversos domínios relacionados à qualidade de vida, entre eles saúde física, bem-estar psicológico, ambiental e social. No total, participaram 89 idosos, separados entre um grupo controle e outro submetido à intervenção.
A nova pesquisa brasileira abre caminhos para estudos futuros que incluam a promoção da saudade como forma de tratamento psicológico.
Embora o trabalho ainda seja apenas uma prova de conceito, isto é, uma pesquisa preliminar realizada por especialistas para validar os métodos utilizados antes de investir em estudos mais amplos, os resultados revelam uma perspectiva animadora. O estudo foi publicado na prestigiada Frontiers in Psychology.
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