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‘Sobrevivo achando que a vida vale a pena’


O telefone tocou às 4h30 do último 14 de fevereiro trazendo a notícia: Cacá Diegues estava morto. Do outro lado da linha, Renata Magalhães, companheira do cineasta por 43 anos, levou um susto. Há poucas horas havia deixado o marido na segurança de um hospital, todo feliz se empanturrando de suspiro, com tudo engatilhado para uma cirurgia de raspagem de próstata no dia seguinte, quando ela, então, passaria a noite ao seu lado. Não deu tempo.

Mas Renata tem a energia para cima de quem sempre olha o copo meio cheio. Escolhe pensar que Cacá foi chique até no momento de partir, aos 84 anos. Imagina se fosse em casa?, questiona, lembrando a morte do pai em seu colo, onde hoje ela mora, no Alto da Boa Vista.

Renata Magalhães e Cacá Diegues — Foto: Divulgação
Renata Magalhães e Cacá Diegues — Foto: Divulgação

Foi lá que uma das principais produtoras do nosso audiovisual e a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Cinema recebeu OGLOBO. Era o dia em que se completavam seis anos da perda mais dilacerante de Renata: a de Flora Diegues, sua filha com Cacá, que não resistiu a um tumor no cérebro. Diante de tanta dor, ela prefere colocar a morte no campo do acaso.

— Odeio a ideia do karma, tá? Pressupõe que fez algo para merecer uma dor muito grande. Ninguém pode ter feito uma coisa tão ruim para perder uma filha com 33 anos, com a vida pela frente — diz.

A forma como ela encara as rasteiras, com sorriso largo e bom humor, dá à repórter a sensação de estar diante da encarnação da expressão força da natureza. Sensação que se confirma à medida em que o som da gargalhada dela se propaga pelo quarto e traz leveza a uma conversa, carregada de emoção.

Como foi assistir ao doc sobre Cacá, “Para Vigo Me Voy”, em Cannes, onde esteve com ele tantas vezes?

Emocionante. Público misto, dez minutos de aplauso. Para mim, foi uma catarse. Comecei a chorar na apresentação e só parei 40 minutos depois que acabou. E com a sensação da sorte que tive ao compartilhar 43 anos da minha vida com o Cacá. Tê-lo como pensador brasileiro, cineasta. O doc é costurado em filmes e entrevistas dele. Cacá aparece filmando “Deus ainda é brasileiro”, trabalhando aos 84 anos! Choro sempre na cena da sessão do “Bye, Bye, Brasil” no Nós do Morro. O tanto de gente que ele ajudou a formar.

Cacá Diegues e Renata Magalhães — Foto: Cristina Granato
Cacá Diegues e Renata Magalhães — Foto: Cristina Granato

E o tanto que ajudou a pensar o Brasil com humanidade…

Esse amor pelo país, pela possibilidade de dar certo. Teve milhares de oportunidades de filmar fora, mas o tema dele era o país, os brasileiros. Eu brincava: “Ele me ama, mas antes, o Brasil, depois o cinema e, aí, os humanos”. O interesse que tinha no outro é de um afeto. Incrível que as entrevistas dele nos anos 1970, sobre as patrulhas ideológicas e a presença do cinema brasileiro no mercado, poderiam ser dadas hoje. Ele era doce, mas firme, alagoano. A luta e o enfrentamento como defensor da liberdade, da democracia artística… Patrulha ideológica hoje pode ser traduzida como cancelamento ou censura. Ver como isso foi importante no final da ditadura… E enfrentava um pedaço da esquerda. Foi corajoso sempre.

No velório, na ABL, Gilberto Gil me disse: “Cacá teve uma vida extraordinária”. A filha, Isabel, me falou: “Meu pai só fez o que quis”. Teve ainda um bloco de carnaval na porta. Tudo isso conforta?

É o maior luxo que uma pessoa pode ter na vida. Cacá só fez o que quis. Falava: “Quero que o meu enterro seja uma festa”. E foi. É uma vida a ser celebrada. O velório da Flora foi uma celebração com música.

Mas a morte dele foi uma surpresa.

Sim. O médico falava que ele tinha fragilidade senil, que é o preço da longevidade. Hoje faz seis anos que Flora morreu. Desde a morte dela, ele baqueou. Era o motivo pelo qual eu não podia baquear.

Aí, afundariam os dois…

Brincava que ele era o jesuíta mais ateu que eu conhecia. Não acreditava em nada. A partir da morte da Flora, começou a cair. A morte dele foi um susto. Ia fazer a operação, estava tudo lindo. Saí com os exames ótimos e ele comendo milhares de suspiro, amava doce. E teve parada cardíaca. No fundo, foi chique até nessa hora. Se tivesse acontecido em casa, eu poderia nem ter percebido. Ele estava monitorado, fizeram os procedimentos.

Renata Magalhães e Cacá Diegues — Foto: Divulgação
Renata Magalhães e Cacá Diegues — Foto: Divulgação

Qual é a sua ideia de legado e como ela se aplica ao Cacá?

O legado do Cacá é a minha vida. A maior preocupação agora é levantar recursos para restaurar seus filmes, colocá-los nas plataformas para a obra estar sempre viva. A coisa mais importante para ele era que os filmes fossem vistos. Depois que acabar “Deus ainda é brasileiro” (que está sendo finalizado), me dedicarei a isso. O (Gilberto) Gil já mandou a música, agora tem os efeitos. É produzido pela Lucy Barreto. Graças a Deus, conseguiram o dinheiro que faltava, e o Cacá soube que o filme ia acabar. Em relação a acervo, roteiros, cartas, fotos, é preservar. ABL é o melhor lugar para armazenar e deixar aberto a consulta. Há coisas do arco da velha, correspondências com Glauber (Rocha), roteiros anotados..

Vocês respiravam cinema juntos. Deve estar sentindo muita falta dessa troca.

Sabe os momentos mais esquisitos? Os mais bobos. Tipo: vai ter jogo da Seleção Brasileira, com que vou assistir, falar da escalação? Jogo tênis e, quando chegava, a primeira pergunta era: “Jogou bem? Ganhou?”. Hoje, joguei bem à beça e não tinha ele para perguntar. No cinema, Cacá está presente o tempo inteiro. Ou ele fez muito a minha cabeça ou a gente pensa muito parecido. Mas nesse cotidiano… A gente brincava que nossa história (se conheceram quando ela comprou o apartamento que ele estava vendendo) era comédia de beijo de Hollywood.

Você tem experiências muito próximas e diferentes da morte. Flora tinha tudo pela frente. O que pensa sobre esses mistérios da vida?

Os acasos? Bom… Superar a gente nunca supera, mas sobrevivi à morte da Flora achando que a vida ainda vale a pena e que é bom dar risada. Acho que é coisa do acaso mesmo, teoria do Darwin, evolução das espécies. Coisas que não se explicam. E se tentar explicar, o que aconteceu com a Cacá, a gente pira. Parece poliana o que vou dizer, mas… Sou muito amiga da Cissa Guimarães e, assim que Flora morreu, estive com ela, que perguntou: “Se Deus ou quem for aparecesse e dissesse ‘vou te dar uma filha incrível, mas vou levar cedo’, você ia querer mesmo assim?”. Eu ia!

Flora me consola em alguns aspectos. Primeiro, eu que fiz aquela pessoa incrível. Será sempre a minha filha, e serei sempre a mãe dela. Morreu muito cedo, mas tinha uma liberdade, uma alma tão livre, e viveu tão plenamente. O acaso de ela ter câncer no cérebro… Ela não viveu para essa doença. Passou os quatro anos de diagnóstico plenamente, sozinha, trabalhando. E a gente teve uma relação plena, ela nasceu sábia.

O que te ensinou de mais precioso?

Na primeira experiência de morte… parece que abre um negócio… Meu pai morreu em 2011, no meu colo, aqui nessa casa, que era dele, depois de eu ter vindo almoçar. Teve um infarto. E eu: “Gente, como assim? O cara tá ótimo e morre no meu colo?”. Era saudável, atleta. Parece acidente de carro, sabe? Flora tinha se mudado para Nova Iorque e veio para a missa. Quando abri a porta, a abracei e falei: “Viu que tragédia?”. E ela: “Não, mãe, meu avô viveu vida plena e só fez o que quis. Tragédia é o Fábio Barreto (cineasta que sofreu um acidente e ficou nove anos em coma)”. Caramba! Ela tinha 23 anos, e toda a razão. Ela me levava para mergulhar no Arpoador… Era essa pessoa sábia. Então, foi um presente.

Os amigos que fez, o amor que emanou. Ano passado, estava em Alagoas com minha outra filha, Júlia. De repente, me vi na varanda falando: “Flora, Júlia, vamos dar um mergulho?”. Era meu aniversário. O lado que escapo é esse: achando que Flora me dá esses presentes, que o Cacá acabou de me botar num roteiro inacreditável e ainda ajudou o Waltinho (Walter Salles) a trazer o Oscar.

Porque odeio a ideia do karma, tá? Pressupõe que você fez algo para merecer uma dor muito grande. Ou que está pagando por uma dor que alguém… Não acredito. Ninguém pode ter feito uma coisa tão ruim para perder uma filha com 33 anos, maravilhosa, sábia, com uma carreira linda, vida pela frente, querendo ter filho e tudo. Então, prefiro botar na conta do acaso. Porque temos que entender que tem coisas que a gente não entende. Mas eu continuo acreditando no universo, sabe? Acho que eles estão aqui. Ainda estão aqui (risos).

Renata Almeida Magalhães — Foto: Leo Aversa
Renata Almeida Magalhães — Foto: Leo Aversa

Como você está se sentindo agora, quatro meses após a morte do Cacá?

Estou aqui só indo atrás do roteiro que ele deixou preparado para mim (risos). No último dia dele, mostrei as fotos do vestido que usaria no Oscar. Ele achou lindo. Disse: “Vão dar em cima de você” (risos). Logo depois (da morte), entrei numa nave espacial para o planeta Oscar. Foi esquisito. Toda aquela loucura e, puf, ganhamos. Falei com o Waltinho (Walter Salles, cineasta): “Não acha que o Cacá tem a ver? Acabou de chegar lá, deve ter negócio de três pedidos” (risos). Tenho certeza que Cacá queria que eu fosse para o Oscar.

Ele arrasou no roteiro, hein?

Arrasou. Depois veio a FliPenedo, em que foi homenageado, e pensei: “Cacá tá me mandando para Alagoas (risos)”. Teve o Prêmio Platino (de Cinema Ibero-Americano), na Espanha, levamos três prêmios para a língua portuguesa, o Festival de Cinema Brasileiro de Paris, onde “O aumenta que é rock and roll” (filme produzido por Renata) ganhou dois troféus. No meio, surgiu Cannes e, depois, saiu minha cidadania portuguesa. Fui emendando. Ali, foi uma aterrissagem. E não tenho dúvida agora: tem um bando de gente fazendo meu roteiro, foi tudo tão encaixadinho.

É especial ver o momento do cinema brasileiro como presidenta da Academia? Desde que assumiu, algo andou?

Sim! Walter Salles, Andrucha Waddington e Sergio Machado se inscreveram, mais que triplicou o número de sócios. Tem mais diretores que produtores. O cinema brasileiro é e sempre muito importante, mas estava sufocado. É impressionante como, quando se respira, vem. Imagina quanto custaria uma campanha da Embratur para alcançar o que “Ainda estou aqui” fez pelo Brasil? É imensurável. Fora a autoestima, o orgulho. Virou Copa do Mundo, conversa de bar, tema de carnaval.

Famílias discutindo assunto que voltou a estar na nossa agenda, infelizmente. Sempre disse que o sucesso de um ajuda o próximo filme brasileiro. A gente não deve brigar entre a gente. Outro dia, saiu uma nota dizendo que o market share do cinema brasileiro já era o maior dos últimos tempos, mas que os dois blockbusters previstos, “Ainda…” e o “O auto da compadecida” já tinham sido lançados. Gente, quando Walter Salles achou que estava fazendo um blockbuster? Nunca! Isso é incontrolável. O filme é maravilhoso, chegou no momento e com a campanha certa. Teve o (Gabriel) Mascaro em Berlim, o Kleber (Mendonça) em Cannes…

Não podemos esquecer que tivemos quatro anos de um governo que paralisou a atividade que já vinha com dificuldades em termos da burocracia. A falta de previsibilidade da Ancine… Você entra com um projeto e ninguém te dá data, cronograma. Nisso você vai perdendo a lei, enchendo o saco da própria história. E tem a questão do VOD (video on demand), que está andando. Jandira Feghali entrou com projeto da regulamentação muito melhor do que os que estavam na mesa. Não podemos falar de audiovisual sério sem regulamentação do streaming. Não precisa inventar a roda. Streaming é regulamentado em todos os países que têm audiovisual forte. Vê o modelo do Canadá, da Coreia do Sul, da França, da Espanha. Escolhe.

Com que projetos está envolvida? Havia algo com Cacá?

Cacá estava cheio de projetos. Tinha um filme pequeno com Silvio Guidane, queria chamar a Marieta (Severo). Também desejava fazer um doc sobre a Benedita (da Silva). Eu estava nesse trauma do tempo que se leva para fazer cinema. Me enlouquecia também essa coisa de estar na Ancine e, de rpente, o cara não vai com a sua cara e pede para você ir no Vidigal pegar o contrato social da cooperativa de táxi que te prestou serviço, de um filme que se passava no Vidigal, sabe? Afe! Difícil. Por isso, não produzi o “Deus ainda é brasileiro”. Até porque, emendou com Flora, tinha que acabar o “Aumenta…”.

Na Academia, consegui botar o cinema no lugar da alegria. Debatemos os filmes, vemos o que está sendo produzido. E ganhamos o Goya pela primeira vez. Conquista das academias, porque as indicações, como em outros prêmios, são do distribuidor, do governo…. Conseguimos trazer para as academias. Ainda quero ter um lugar que funcione como cineclube. Já chego lá. Tô começando a desenvolver um road movie, baseado num livro, com três jovens. E tem o Prêmio do Cinema Brasileiro, dia 30.

O cinema brasileiro no mundo. Tudo a ver com o momento, né?



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