[RESUMO] Um dos maiores e mais reservados cineastas em atividade, o espanhol Víctor Erice, diretor do clássico “O Espírito da Colmeia” (1973), concedeu à Folha uma de suas raras entrevistas. Ele comentou seu mais recente filme, “Fechar os Olhos” (2023), falou de seu método de criação e dos diretores que admira, como Glauber Rocha, e lamentou a desestruturação da experiência cinematográfica com o advento do meio digital.
Durante dez intensos dias, no meio do inverno na região da Toscana, um grupo de jovens cineastas da China e da América Latina se reuniu no pequeno vilarejo de Monte San Savino para um laboratório de realização cinematográfica, sob orientação do lendário cineasta espanhol Víctor Erice. O encontro, realizado em novembro do ano passado, foi produzido pela associação cultural Le Giornate del cinema di Monte San Savino.
A situação remete a um filme de Luis Buñuel, outro mítico cineasta espanhol que também tinha apreço pela confusão entre o sonho e a realidade. Cruzando as três principais ruas do minúsculo povoado, misturando chinês com espanhol, inglês e italiano, esses jovens seguiam as indicações do “maestro” Erice, cujo mote era “mirar, filmar, ver”.
Conhecido pelo seu caráter reservado e por grandes e misteriosos intervalos entre filmes que marcaram a história do cinema, Víctor Erice é um dos diretores mais importantes em atividade.
Em 1973, venceu o Festival de San Sebastián com “O Espírito da Colmeia”, seu primeiro filme, que se tornou canônico pela forma inventiva e singela de lidar com o duro momento da ditadura de Francisco Franco na Espanha. Depois dirigiu os longas “O Sul” (1983) e “O Sol do Marmelo” (1992), que venceu o prêmio do júri no Festival de Cannes.
Três décadas depois, lançou seu quarto e mais recente filme, “Fechar os Olhos” (2023), também exibido em Cannes.
A filmografia do diretor é singular pela maneira como evoca os fantasmas e os conflitos políticos, sem abrir mão de uma abordagem visual sofisticada. Os personagens são figuras de poucas palavras, mas de intensa presença, e os filmes nos convidam a compartilhar a intimidade desses indivíduos repletos de dúvidas e curiosidade.
Como um dos participantes do laboratório, pensei que essa era a oportunidade perfeita para entrevistar Víctor Erice. Fui avisado de antemão que ele não é muito afeito ao formato; cansam-no as grandes análises a respeito de seus filmes, e sinto que não lhe interessa revelar as intenções e os segredos que conduzem seu processo artístico.
Aos 84 anos, é um dos poucos remanescentes de sua geração que continua filmando. Lembra-se constantemente de Abbas Kiarostami, de quem foi grande amigo e por quem nutre enorme admiração, a ponto de se emocionar ao rever os trechos dos filmes do realizador iraniano que exibia aos alunos.
Outro nome caro a Erice é Jean-Luc Godard, que realizou, em sua opinião, “a maior obra a respeito do cinema” —a série Histoire(s) du cinéma. Ele também fala bastante de Aki Kaurismäki e Pedro Costa, colaboradores junto a Erice no filme episódico “Centro Histórico” (2012), e seus principais interlocutores hoje.
Cinema, aliás, é o centro da vida de Erice. Cinéfilo voraz, conhece minúcias do trabalho de variados realizadores. Esse vasto repertório encontra nele uma reflexão ativa; embora não se assuma como teórico do cinema, apresenta sua visão de forma precisa e objetiva durante os encontros no laboratório.
Fala de Charles Chaplin e de Robert J. Flaherty para defender um cinema que se alimenta da realidade, do que está à frente da câmera. Para ele, a magia consiste em ser uma arte capaz de falar a uma audiência universal por meio de um repertório comum de emoções humanas, unindo diferentes espectadores independentemente de crença ou contexto, mesmo em um mundo cada vez mais dividido como o nosso.
Os participantes do laboratório constantemente procuravam Víctor Erice em busca de conselhos para a realização dos curtas-metragens que deveriam entregar como trabalho de conclusão. Ouviam formulações aparentemente simples, mas de difícil aplicação: não levar ao filme ideias preconcebidas; observar o que existe ao redor antes de filmar; aprender com as pessoas e com os espaços que escolhemos para um filme.
Depois, o cinema exige um trabalho de organização e estruturação, de modo que Erice era firme na necessidade de planejamento, de pensar o que faríamos durante as filmagens, de refletir previamente sobre planos, escolha de ângulos, movimentação dos personagens. O cinema nos obriga a uma longa relação de aprendizado, e o melhor jeito de aprender a fazer filmes, insistia, é assistindo a muitos filmes.
Conforme o laboratório se aproximava do fim, encontrei o momento de propor a Erice esta entrevista. Acredito que ela condensa de maneira clara as principais formulações que desenvolveu em nosso convívio. É sempre oportuno ouvir um grande diretor falar sobre cinema, principalmente sobre um tipo de escola de realização que talvez esteja em vias de desaparecer.
Em “Fechar os Olhos“ há um personagem que coleciona rolos de filme como se estivesse encarregado de salvá-los do desaparecimento iminente. O filme se passa em um mundo onde esse formato é apresentado como um elemento do passado, prestes a ser esquecido. Você acha que há uma perda de materialidade no cinema? E como isso influenciou seu novo filme?
O personagem de “Fechar os Olhos” que você menciona não é realmente um colecionador. Amigo do protagonista e editor de seu filme, podemos pensar que foi no passado um distribuidor de filmes em cinemas de caráter mais cultural…
Mas, para responder à sua pergunta: o cinema certamente mudou suas técnicas, suas ferramentas, seus dispositivos de projeção. As imagens digitais são todas calculadas. Elas nem sempre são o rastro de algo existente. E o mais impressionante sobre essa mutação é que o absolutamente artificial é feito para parecer natural. Em outras palavras, a imagem fotoquímica, típica do cinematógrafo, é imitada pela imagem digital.
O poder absoluto sobre a imagem pode chegar a significar que não se trata mais de mudar o mundo, aquilo que vemos, mas apenas de mudar a imagem do mundo. Quanto a “Fechar os Olhos”, direi que Miguel Garay, o personagem interpretado por Manolo Solo, como diretor de cinema que era, é filho da imagem fotoquímica. Por isso, filmei “La Mirada del Adiós”, o filme “que nunca existiu”, em suporte fotoquímico, em 16 mm.
Os atores de seus filmes são sempre marcados por uma gravidade muito poderosa que vem mais da presença deles do que das informações que transmitem por meio do diálogo. Como você escolhe os atores e o que orienta seu trabalho com eles?
Ao longo de minha experiência como cineasta, trabalhei com atores profissionais e pessoas que não eram atores, encontradas ao acaso. Em minha opinião, o mais importante é a seleção dos intérpretes, uma grande parte do destino do filme está em jogo nessa etapa. Eu procedo seguindo um modelo interno, e não é em vão que participei do roteiro de todos os longas-metragens de ficção que filmei.
Em “Fechar os Olhos” há um momento em que os personagens cantam a mesma música do faroeste “Rio Bravo” (1959), em um diálogo direto com o filme de Howard Hawks, em que essa cena mostra um pequeno momento de companheirismo e prazer antes do confronto final. Mas esse não é o único elemento que aponta para uma intenção sua de lidar com um certo passado do cinema. O que você tem visto ultimamente e o que, em termos de filmes ou leituras, tem lhe interessado ou perturbado?
Conhecer o passado é essencial para saber de onde viemos. Em suma, o que somos ou poderíamos ser. Nesse sentido, na minha idade, tenho o hábito de rever filmes do passado, aqueles que vi pela primeira vez há muitos anos. O mesmo acontece literatura, eu leio de novo… Mas, atendendo ao seu pedido, vou citar autores que frequento e que rodaram seus filmes em português: Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Pedro Costa… E na memória, inesquecível, Glauber Rocha.
Há uma ideia recorrente de que o cinema está passando por uma fase terminal e, no entanto, o cinema insiste em continuar existindo. Você voltou com um longa-metragem depois de um período considerável. O que continua a motivá-lo a fazer filmes e quais são as principais dificuldades que encontra hoje?
Sou movido pela necessidade. É tão simples quanto isso. Dificuldades? Todos os tipos de dificuldades. A principal delas: como autor, pertenço a um mundo que já está socialmente extinto. O cinema não tem mais o espaço na sociedade que ocupava no passado.
Os filmes são feitos e consumidos de uma maneira muito diferente hoje. Suas imagens são digitalizadas para serem transmitidas pela televisão, por computadores, tablets e telefones celulares. Isso favorece um tipo de recepção que está cada vez mais próximo da noção de consumo. Não é de surpreender que falemos tanto de usuários quanto de espectadores.
Desde a invenção do cinema, a exibição de um filme significava uma opção de vida diferente, o sonho comum na escuridão do cinema público. Não tinha nada a ver com a condenação à privacidade do lar que é própria das telas pequenas. O novo regime modificou substancialmente o que era chamado de “o lugar do espectador”.
Para mim, está claro que o cinema, o que era e o que poderia ter sido, o que restou dele, hoje tem muitas dificuldades para sobreviver nos domínios da indústria, governados pelas grandes plataformas audiovisuais…
A crítica cinematográfica sempre foi uma parte intrínseca da cultura cinematográfica, mas está desaparecendo e sendo substituída pelo jornalismo cultural. Você acha que a crítica foi importante para sua formação? E como você percebe essa perda?
Sim, a crítica cinematográfica foi muito importante em minha formação. Hoje há uma perda, como você aponta, mas ela não é absoluta. É verdade que não há mais críticos com a importância que André Bazin ou Serge Daney tiveram, não apenas na França.
A crítica publicada em jornais generalistas, com poucas exceções, é expressa em termos de opinião ou gosto pessoal. O modelo cultivado com mais frequência é a resenha. Às vezes não há distinção entre o que é informação e o que é propaganda.
Quanto aos chamados críticos especializados, aqueles que ainda são publicados na mídia impressa, parece-me que eles estão passando por um período difícil. A crítica perdeu sua capacidade de influenciar, tem de se fazer ouvir em condições extremas e desiguais de concorrência. Ela vive no rastro dos assuntos atuais, uma área em que os eventos são produzidos e consumidos em um ritmo vertiginoso.
Essa é uma questão difícil de ser resolvida porque o novo regime digital desestruturou a experiência cinematográfica. E também devemos levar em conta o crescimento imparável da escrita cinematográfica na internet, por meio de blogs e revistas digitais.
Minha impressão é que a transição de uma cultura cinematográfica analógica para uma digital está ocorrendo em meio à confusão e ao ecletismo generalizados, promovidos pela urgência de mudar o cânone ou as regras do jogo.
Acredito que, diante da escassez de referências críticas estáveis, o cineasta é o principal agente legitimador de outro cineasta. Não há melhor autoridade moral do que a de outro cineasta em cujo trabalho nos reconhecemos.
Filmografia de Víctor Erice
“O Espírito da Colmeia” (1973)
A infância de uma menina é assombrada por monstros e pelo franquismo
“O Sul” (1983)
A investigação de uma relação entre pai e filha, onde as palavras não conseguem preencher as lacunas
“O Sol do Marmelo” (1992)
A solidão de um pintor em seu ofício desafiador é quebrada pelas poucas conversas que tem com um amigo
“Fechar os Olhos” (2023)
Um diretor aposentado busca por seu ator e amigo desaparecido, lidando com efemeridade da memória
Deixe um comentário